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Índia: o país onde quem é vegetariano é considerado de direita

Comer ou não carne tornou-se tema de discussões de ideologia política na Índia, um país onde a culinária histórica e cultural é muito variada e complexa Alguns líderes do partido governista BJP pediram o fechamento de açougues durante um grande festival hindu
Getty Images/Via BBC
A comida se transformou mais uma vez em um tema para discussões ideológicas na Índia, com políticos de direita pedindo o fechamento de açougues na capital Delhi durante o festival hindu de Navratri. Mas a insistência em projetar a Índia, ou mesmo os hindus, como vegetarianos ignora a longa e intrincada relação desse país com a carne.
“Se outras comunidades respeitarem o festival hindu e aceitarem a decisão, nós também mostraremos respeito quando seus festivais forem celebrados”, disse Parvesh Verma, parlamentar do partido de direita Bharatiya Janata (BJP), que governa a Índia.
Verma sugeriu que os açougues em toda a Índia fechassem para o festival de nove dias – que começa em 2 de abril – um período em que muitos hindus jejuam e se abstêm de comer carne.
Veja abaixo um vídeo de 2021 sobre um festival que terminou com uma “guerra de esterco” na Índia.
Festival na Índia termina com ‘guerra’ de esterco de vaca
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A oposição – que inclui o governo liderado pelo Partido Aam Aadmi em Delhi – está furiosa com a sugestão. Essa é a primeira vez que algo assim acontece na capital gastronômica, famosa por seu caril de frango suculento e cremoso e espetinhos defumados macios.
A carne é parte importante da culinária indiana
Getty Images/Via BBC
Verma parece estar ignorando o fato de que o Ramadã (um dos pilares do Islã) já começou e a carne é um aspecto importante do iftar – a refeição noturna com a qual os muçulmanos quebram seu jejum diário durante um mês. Mas ele também aparentemente acredita que os donos dos açougues e a maioria dos clientes são muçulmanos – e que todos os hindus na Índia, ou mesmo em Delhi, celebram o Navratri.
Tanto a história quanto os dados e as experiências do país parecem contradizer o parlamentar. A dieta indiana, com toda a sua graça e engenhosidade, resiste à fácil categorização – hindu ou muçulmana, vegetariana ou onívora – que prevalece na ala de direita do país.
“É muito lamentável, porque as tradições indianas são mais complexas do que isso”, diz Vikram Doctor, editor do The Economic Times, que escreve frequentemente sobre a comida do país.
“A Índia tem uma tradição muito antiga de comer carne e uma tradição vegetariana muito profunda. Mas muitas vezes sou forçado a tomar uma posição [em defesa de um ou de outro]”.
O irônico, acrescenta, é que são os progressistas que defendem o consumo de carne na Índia, ao contrário do que acontece no Ocidente, onde a esquerda defende menos carne na mesa e hábitos alimentares mais sustentáveis e amigáveis para o clima.
“Na Índia, o vegetarianismo está sendo usado como arma pela direita”, diz Doctor.
Carne
Até agora, a batalha pela comida se restringia principalmente à carne bovina. Os hindus consideram as vacas sagradas e o abate de vacas foi proibido em quase todos os Estados indianos.
Mas a guerra contra a carne bovina vem se intensificando desde que o governo nacionalista do primeiro-ministro Narendra Modi chegou ao poder em 2014. Seu partido fechou matadouros em Estados onde são mais fortes, e grupos de direita hindus lincharam criadores de gado muçulmanos.
O peixe é o prato “não vegetariano” mais popular entre os indianos
Getty Images/Via BBC
O efeito é visível. Enquanto a carne bovina é incluída nos cardápios de cidades como Delhi, geralmente descrita apenas como “carne”, os exclusivos açougues – que oferecem costelinha de porco ou perna de cordeiro – não têm produtos em seu estoque; e aqueles que comem carne às vezes sussurram ao tratar do assunto, quase que brincando.
Isso contraria o fato de que, enquanto muitos hindus de castas altas não comem carne bovina, milhões de dalits (párias ou ex-intocáveis), muçulmanos e cristãos em toda a Índia comem. É também uma carne popular nas comunidades do estado de Kerala, no sul, onde apenas uma minoria se abstém por motivos religiosos.
A carne de caça era parte integrante da dieta indiana já em 70.000 a.C., diz Manoshi Bhattacharya, nutricionista clínico que pesquisou as tradições alimentares da Índia.
Veja abaixo um vídeo de 2018 de uma vaca que correu atrás do seu bezerro, que era levado para o veterinário.
Vaca corre atrás de carroça que levava filhote ao veterinário, na Índia
A história aponta que a carne bovina e de javali era amplamente consumida na Índia antiga, desde a Civilização do Vale do Indo. Os sacrifícios de animais e gado eram comuns no período védico, entre 1500 e 500 a.C. A carne era oferecida aos deuses e depois consumida em festivais.
Portanto, não foram reis muçulmanos ou exércitos invasores que trouxeram o consumo de carne para a Índia, como a ala de direita costuma sugerir.
Em vez disso, foram as dietas existentes que mudaram em reação a novos impérios, comércio e agricultura. Ao longo dos séculos, a carne bovina e depois todo tipo de carne desapareceram da dieta dos brâmanes e de algumas outras castas altas. As razões variam, mas a religião não foi a única razão.
Bhattacharya diz que sua pesquisa indica que os brâmanes no sul da Índia comiam carne até pelo menos o século XVI. No norte, ela foi abandonada junto com outras castas altas, mas apenas no final do século XIX.
Mudanças coloniais
O pesquisador acredita que o colonialismo, que alterou o uso da terra, os padrões agrícolas e o comércio, e produziu a fome, teve um papel importante na formação da dieta indiana moderna – na qual predominam arroz, trigo e lentilhas.
Mas, como em todas as regras da culinária indiana, há uma exceção – algumas comunidades brâmanes ainda comem carne. Os especialistas da Caxemira (sábios do hinduísmo) são famosos por seu rogan josh, um ensopado de cordeiro cozido lentamente em um molho espesso com uma boa dose de pimenta. Em Bengala e ao longo da costa sul do Konkan, uma variedade de peixes frescos é consumida nas famílias brâmanes.
Hoje, a carne bovina é o menos popular de todos os chamados alimentos básicos não-vegetarianos oferecidos. O peixe é o principal, seguido por frango, cordeiro e, finalmente, carne bovina, segundo dados de uma pesquisa nacional por amostragem realizada na Índia no ano passado.
É difícil precisar exatamente quanta carne os indianos consomem. Quando perguntados em uma pesquisa do Pew Institute se são vegetarianos, 39% disseram que sim e 81% disseram que comiam carne, mas com restrições, ou disseram não comer certos tipos de carne ou se abster em determinados dias da semana.
Mas as pesquisas do governo mostram resultados mais baixos: apenas um quarto das famílias rurais e um quinto das famílias urbanas relataram comer carne (ou peixe) na semana anterior, de acordo com uma pesquisa de 2021.
Isso não significa necessariamente que o resto seja vegetariano, apenas que eles não comeram carne nos sete dias anteriores à pesquisa. Especialistas dizem que as pesquisas rotineiramente subestimam o consumo de carne porque as populações de castas mais baixas podem estar mais relutantes em admitir.
“Somos vegetarianos que ‘também’ comem carne”, diz o Dr. Bhattacharya.
E é isso que Vikram Doctor também aponta. A Índia, diz ele, é uma das únicas culturas do mundo onde o vegetarianismo foi adotado cedo entre a elite, enquanto outros continuaram a comer carne.
O resultado foi uma mesa diversificada e deliciosa que inclui carne sem sempre torná-la o prato predominante de uma refeição.
Semi-vegetariano
Doctor, que vive em Goa, está inclinado a descrever a comida local como “semi-vegetariana”. Um exemplo favorito é o curry de abóbora misturado com camarão seco, que se destaca por ser nutritivo e delicioso.
“Quando as pessoas vêm para Goa, tudo o que querem é carne. Mas os goeses não comem muita carne. Até a comida católica aqui consiste em muitos vegetais com um pouco de carne ou peixe seco.”
Ele explica que há muitos exemplos disso – uma receita popular dalit no estado de Tamil Nadu, no sul, mistura feijão com miúdos secos para ficar “robusta”, o que de outra forma seria uma refeição vegetariana.
No entanto, ele teme que essas tradições engenhosas e sustentáveis estejam desaparecendo. “Você não encontrará comida semi-vegetariana nos menus dos restaurantes.”
Ele está certo – como alguém de Hyderabad, uma cidade famosa por sua culinária muçulmana, os pratos que considero meus favoritos são difíceis de encontrar em outros lugares. Como a dalcha, uma sopa picante de lentilha e legumes cozida com cordeiro; ou kut de tomate, ovos cozidos em um molho de tomate espesso e picante.
Dado o vasto repertório vegetariano da Índia – com uma dose saudável de carne e frutos do mar – Doctor acredita que temos a oportunidade de produzir uma tradição alimentar mais saudável e amigável para o clima.
Mas a tendência está indo em outra direção. O consumo de carne está em alta, impulsionado pela produção industrial de frango. No ano passado, o prato mais pedido na plataforma de delivery da India Swiggy foi biryani de frango. Os indianos pediam dois pratos a cada segundo.
“As tradições vegetarianas da Índia devem ser celebradas”, diz Doctor. “Mas o que eles estão fazendo é impô-las ao povo – e isso não convence ninguém.”
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