Como o vazamento do rascunho de um parecer antecipando a revogação do aborto nos EUA abala os alicerces da Suprema Corte americana
Divulgação de documento quebra rigoroso protocolo de confidencialidade entre os nove juízes e expõe tribunal ao jogo político Possibilidade da Suprema Corte dos EUA mexer no direito ao aborto provoca protestos no país
Dois aspectos cercam a divulgação do rascunho de um parecer da Suprema Corte dos EUA: o seu conteúdo, antecipando a anulação de uma decisão em vigor há meio século que assegurava às mulheres o direito do aborto; e o vazamento em si, quebrando um rigoroso protocolo de confidencialidade entre os juízes do tribunal, com graves implicações para o seu futuro.
Pela primeira vez, um projeto de decisão da Suprema Corte vem a público antes de sua deliberação final, prevista para o fim de junho. A tradição sobreviveu até agora por um acurado sistema de proteções ao processo judicial, ao qual apenas os nove juízes e seus assessores tinham acesso.
O vazamento ameaça disseminar o ambiente de desconfiança entre os magistrados e deixar o Judiciário à mercê do jogo político – algo dramático especialmente num ano de eleições legislativas.
Suprema Corte dos Estados Unidos. Segundo site, juízes decidiram derrubar decisão da década de 1970 que garantia direito ao aborot
Reuters
A veracidade do documento redigido pelo juiz Samuel Alito foi confirmada pelo chefe de Justiça dos EUA, John Roberts, que classificou o vazamento como “traição à confiabilidade do tribunal”. Ele anunciou uma investigação para chegar ao autor, que é comparado ao “Garganta Profunda”, a fonte do FBI que deflagrou o escândalo do Watergate e levou à renúncia do ex-presidente Richard Nixon.
O juiz Roberts tentou minimizar os efeitos da divulgação do relatório, ressaltando que as suas conclusões contra a decisão Roe versus Wade, que legalizou o aborto no país, não são definitivas.
“Essa traição à Corte pretendia minar a integridade de nossas operações, não terá sucesso. O trabalho do tribunal não será afetado de forma alguma”, assegurou Roberts.
Manifestantes a favor da manutenção do direito ao aborto protestam diante da Suprema Corte nesta terça (3)
Reuters/Evelyn Hockstein
Assim que o parecer foi publicado pela organização de notícias Politico, surgiram várias linhas de especulações sobre a sua origem. As mais convincentes dão conta de que o relatório teria sido vazado por alguém ligado à ala conservadora que atualmente domina o tribunal. Três dos seis juízes conservadores foram indicados pelo ex-presidente Donald Trump.
Por esta tese, o objetivo seria manter presos à decisão os cinco magistrados que, em princípio, concordaram em manter uma lei do Mississippi proibindo o aborto após 15 semanas de gravidez. Sua consequência imediata seria a revogação da decisão histórica que estabeleceu em 1973 o direito constitucional ao aborto. O vazamento impediria, assim, a deserção de um membro desta super maioria porque ela ficaria automaticamente atrelada à pressão da opinião pública.
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No turbilhão de teorias, especulou-se também que o rascunho do parecer de Alito tenha sido vazado por alguém vinculado à ala progressista e minoritária do tribunal, indignado com a anulação do direito do aborto. A ideia, um tanto quanto ingênua, era a de que reação pública pudesse fazer um dos juízes conservadores mudar seu voto e manter a proteção ao aborto.
Independentemente de quem foi a fonte, o vazamento foi interpretado como uma ruptura sem precedentes das normas de conduta da Suprema Corte americana. Em 1973, a revista Time antecipou a decisão Roe versus Wade horas antes de o juiz Harry Blackmum anunciar a votação.
Outros vazamentos de opiniões ou tendências ocorreram, mas nunca a publicação de um rascunho, como o que abala atualmente os alicerces do tribunal.g1 > MundoRead More