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Expedição leva brasileiros negros ao ponto mais alto da África: “Só via pessoas brancas”

Expedição leva brasileiros negros ao ponto mais alto da África: “Só via pessoas brancas”

Grupo formado por Aretha Duarte, Jorge Afonso, Danilo Mendes, Eder Long e Katia Agatha, conquista topo do Kilimanjaro desafiando os limites impostos pela raça e pela condição social Expedição afirmativa leva atletas brasileiros negros ao ponto mais alto da África
Ser a primeira negra latino-americana a chegar ao topo do Everest não saciou a fome de conquistas de Aretha Duarte. Era preciso ver outras pessoas que nem ela no topo. Com 13 anos de montanhismo, a paulista de Campinas sempre se viu isolada em seu meio. Mulher, negra e periférica, Aretha resolveu dar um passo inicial para que gente com pouco acesso a um esporte considerado caro começasse a praticá-lo. Motivada pelo mês da Consciência Negra, Aretha selecionou outros quatro montanhistas – todos negros – e, juntos, pegaram um avião rumo à Tanzânia. Ao longo da expedição, eles foram as únicas pessoas pretas na travessia, exceto os guias locais tanzanianos.
O objetivo da expedição – batizada de Sankofa – era alcançar o cume do Monte Kilimanjaro, o ponto mais alto da África. O grupo embarcou para a Tanzânia no dia 1º de novembro. A conquista do topo aconteceu na manhã do último dia 9. De volta ao Brasil desde o dia 11, o grupo de montanhistas ressaltou o pioneirismo da ação.
– Eu olhava para o lado e só via pessoas brancas. E eu negro, sabendo tudo o que eu representava. As pessoas olhavam para a gente e estranhavam: “Como assim, esses negros aqui?”. Alguns olhares eram de admiração, outros de discriminação. Quando cheguei no topo eu falei: “Esse esporte também é para negro” – conta Danilo Mendes, um dos integrantes do grupo.
Expedição Sankofa chega a um dos topos do Kilimanjaro
Gabriel Tarso/Divulgação
Ex-jogador de futebol com passagem pelas divisões de base do Vasco, Danilo tem 39 anos, é carioca e morador da Vila da Penha, Zona Norte do Rio. Aposentado dos gramados desde 2015 – seu último clube foi o Santa Helena-GO -, ele foi escolhido para participar da expedição através de um processo seletivo na empresa em que trabalha, uma das patrocinadoras da Sankofa.
Danilo se juntou ao paulista Jorge Afonso, ao baiano Éder Long e à carioca Katia Agatha. Morador da Zona Norte da capital paulista, Jorge foi selecionado pela própria Aretha, que o conheceu no coletivo Outdoor, formado no início da pandemia para reunir pessoas negras com interesse em atividades ao ar livre.
Já Éder foi indicado através de Gabriel Tarso, profissional de audiovisual e parceiro de longa data das expedições de Ágatha. Foi Gabriel quem acompanhou o grupo para documentar toda a travessia Sankofa. Por fim, Aretha selecionou a jovem Katia Agatha, de 21 anos. Moradora do Morro do Turano, na Zona Norte do Rio, ela conheceu a líder da expedição no Centro de Escalada Urbana do Rio de Janeiro (CEU-RJ), projeto de popularização do esporte nas comunidades cariocas.
Aretha Duarte, a líder e idealizadora da expedição Sankofa
Gabriel Tarso/Divulgação
– A maioria das pessoas que participaram eu já conhecia de alguma trilha ou atividade. Desde que eu voltei do Everest, acreditava que o meu sonho de conquista coletiva ainda não estava realizado. Eu voltei do Everest entendendo que sim, que eu fui a primeira pessoa negra a chegar ao topo da montanha, mas que outras pessoas negras também precisavam dessa oportunidade. Então iniciei novas ações, novos projetos desde junho de 2021 para que mais pessoas praticassem essas atividades – afirma Aretha Duarte, tema de matéria do Fantástico em maio de 2021 quando chegou ao topo do Everest.
Dificuldades com a altitude
Ao todo, foram 12 dias de viagem. O grupo partiu de São Paulo rumo a Arusha, cidade ao norte da Tanzânia, localizada nas proximidades do Parque Nacional do Kilimanjaro. Foram dois dias fazendo aclimatação ao fuso horário (6h a mais que Brasília) e à alimentação, formada basicamente por carne bovina e leite.
Antes de iniciar a expedição, o grupo de Aretha ainda fez uma visita a uma tribo Massai, grupo étnico africano de seminômades que vive no norte da Tanzânia e no Quênia. Os Massai são uma das 120 tribos que habitam o território tanzaniano e uma das suas características é o gosto pela dança, pelo artesanato e por suas comidas típicas.
Grupo da expedição Sankofa posa durante a ida ao Kilimanjaro
Gabriel Tarso/Divulgação
– A expedição não tinha somente um intuito esportivo, tinha também o intuito de imersão cultural – explica Aretha – Depois de visitarmos a tribo Massai, já no terceiro dia, nós fomos à montanha para iniciar a escalada ou trekking na montanha. Podemos chamar de trekking, porque em nenhum momento tem trechos super técnicos ou verticalizados para escalada. Pelo menos essa era a nossa expectativa – completa.
Das sete rotas existentes para se alcançar o topo do Kilimanjaro, o grupo de Aretha escolheu subir pela rota conhecida como Lemosho, que circunda a montanha por todos os seus 360º. Num trecho dela, a equipe foi surpreendida por um paredão de pedras.
– A gente imaginava que seria trekking do início ao fim, mas teve um dia de ascensão e foi desafiador para grande parte do grupo, que não tinha experiência de passar em trechos mais técnicos. Era um trecho vertical, onde a gente tinha que apoiar mãos e pés para transpor aquela rocha. Foram 30 minutos de escalada nesse trecho. Apesar do desafio, apesar da novidade, a gente conseguiu transpor com segurança, mesmo porque isso para a gente era algo primordial – destaca.
Montanhistas brasileiros negros visitam tribo Massai durante expedição na África
Ao passo em que ia subindo a montanha, com direito a paradas para comer e dormir nos diversos acampamentos existentes pelo caminho, o grupo ia se deparando com aquilo que seria a maior dificuldade até o fim da expedição: a altitude.
Mesmo com monitoramento diário das condições de saúde de todos os participantes – a própria Aretha media saturação, oximetria e batimentos cardíacos dos colegas -, sintomas como dor de cabeça, náusea, dificuldade para respirar, caminhar e dormir eram comuns nos participantes. O auge do desgaste físico dos integrantes da expedição foi o dia 9 de novembro, o chamado “dia de ataque ao cume”.
– O maior desafio foi o desnível de ar. Foram mais de 1 mil metros de ascensão. No dia mais alto, a gente caminha 1.300m de desnível. São só 5,5km de caminhada, mas num desnível enorme. Isso é muito para o nosso corpo, até para quem tem experiência – explica Aretha.
Uma das paradas durante a subida ao Kilimanjaro
Gabriel Tarso/Divulgação
A conquista do topo
Aretha, Jorge, Danilo, Éder, Ágatha, Gabriel e os guias locais (era um guia tanzaniano acompanhando cada participante) saíram do último acampamento antes do cume por volta das 23h30 do dia 8. Durante a caminhada, ao chegar a uma altitude de aproximadamente 5 mil metros, já no dia 9, Jorge não teve forças para continuar e desistiu de tentar ir até o topo do Kilimanjaro. Ele voltou ao acampamento acompanhado por um guia.
– A gente entendeu, por mais que ele estivesse aclimatado e bem do ponto de vista de saúde, ele precisava voltar dali e ele voltou. O Jorge estava tão esgotado que ele nos reportou que até a descida foi difícil – revela Aretha.
Aretha e seus colegas contemplam uma das visitas do Kilimanjaro
Gabriel Tarso/Divulgação
Mesmo com uma baixa no grupo, os demais participantes da expedição Sankofa seguiram em frente. Por caminharem em velocidades diferentes, eles foram se separando ao longo da travessia. Por volta de 8h30, os primeiros integrantes da equipe chegaram ao cume do Kilimanjaro, que tem uma altitude estimada de 5.895m.
– Foi um desafio também na questão da temperatura, porque partimos a -15ºC para uma temperatura mais alta ao longo do dia. Chegamos no topo, fizemos fotos, fizemos vídeos, celebramos, entendemos ali que cada um estava ali no maior desafio das suas vidas, e depois retornamos. Descemos para o acampamento para descansar e no dia seguinte descemos mais até o último acampamento até que pudéssemos sair do Parque Nacional de Kilimanjaro – detalha Aretha.
Danilo vai ao limite
Dentre os três participantes da expedição que seguiram até o cume, Danilo foi o que encontrou mais dificuldades. Desacostumado à altitude, o ex-jogador de futebol precisou de suporte em diversos momentos da caminhada com pessoas segurando em seus braços para ele continuar se locomovendo.
Como não conseguiu acompanhar o restante da equipe, Danilo e o seu guia, Gerard, ficaram bem para trás. Sabendo do estado do colega, Aretha o orientou a subir somente até a localidade conhecida como Stella Point a 5.756m de altitude.
Contudo, ao iniciar o seu retorno para o acampamento com Éder, Ágatha, Gabriel e seus respectivos guias, Aretha deparou-se com Danilo tentando chegar ao topo do Kilimanjaro mesmo com o seu péssimo estado físico.
Guias tanzanianos acompanharam a expedição Sankofa
Gabriel Tarso/Divulgação
– Quando voltamos, achamos que encontraríamos o Danilo no Stella Point, mas, quando voltei, vi que ele tinha passado de lá e ele estava sendo carregado. Falei para ele que ele não tinha mais condições de seguir, porque não estava mais autônomo, o que poderia deixar sequelas nele até. Naquele momento eu cheguei a abraçar o Danilo, parabenizei o Danilo e fui muito clara sobre a necessidade de ele voltar a partir dali, mas ele me olhou no fundo dos olhos e pediu pra ir um pouco mais – conta Aretha.
Comovida com o pedido do colega, a líder da expedição fez um teste com Danilo para avaliar a sua autonomia e o seu nível de consciência. Como o carioca conseguiu dar 10 passos sozinho e responder todas as perguntas, Aretha prontificou-se a acompanha-lo até o cume, mesmo tendo acabado de vir de lá.
– Pedi para ele fazer um teste dando 10 passos de forma autônoma. Fiz perguntas também sobre nome, idade, estado civil e nome dos filhos. Ele estava bem, consciente. Então pedi para o Gerard descer com a Ágatha e fui para o cume com o Danilo, minha segunda ida ao cume. E de fato o Danilo foi muito lento até chegar ao cume, mas consciente, motivado, resiliente e forte mentalmente. E nós chegamos. Quando ele chegou lá, ele se ajoelhou, agradeceu, fez as preces e me abraçou. Ele estava em êxtase no topo do Kilimanjaro. Aí eu entendi que, por mais que fosse desafiador descer a partir dali, tudo tinha valido a pena – ressalta.
Sankofa e guias posam para foto antes da subida ao Kilimanjaro
Gabriel Tarso/Divulgação
Danilo também dá a sua versão sobre a difícil caminhada até o cume do Kilimanjaro:
– Não tinha experiência alguma em montanhismo. O trekking para mim era um esporte desconhecido. Já treinava, fazia esporte, academia, corria, mas não sabia o que estava por vir. Fui perdendo forças e já tinha desistido por causa dessa situação da respiração, que estava complicado. Mas coloquei na minha mente que não podia sair de lá sem ver aquela vista. Então foram uns 20 minutos de caminhada ao lado da Arehta que valeram a pena. E graças a Deus deu tudo certo – diz o carioca.
A mensagem final da expedição
Após a conquista do topo do Kilimanjaro, o grupo reuniu-se novamente no acampamento mais alto para mais alguns dias de descida. De volta ao Brasil, todos os participantes da expedição esperam multiplicar a semente plantada por Aretha, começando por mudanças nas respectivas vidas pessoais.
– A lição de vida que eu tiro é ser um pai melhor, valorizar a minha vida mais. Eu vi os guias carregando coisas para sustentar as suas famílias e volto sendo uma pessoa melhor como pai e como filho. E sorrir também. Às vezes aqui no Brasil tem tanta coisa boa que a gente não consegue valorizar. Viver é muito bom e volto com a missão de impactar outras vidas. Tenho que disseminar tudo o que eu aprendi ali. Sonhe e busque, porque você consegue – afirma Danilo, que pretende tornar-se um praticante de trekking no Rio de Janeiro.
– Quando cheguei lá, pude perceber qual era a mensagem real da Aretha. É um esporte muito caro, na verdade não vi nenhuma pessoa negra fora do nosso grupo, o que foi muito impactante para mim. Fiquei feliz em ser exemplo para outras pessoas praticarem esse esporte. O montanhismo é um esporte de difícil acesso para quem é da periferia. É um esporte que pode transformar muitas vidas como transformou a minha – completa.
Expedição Sankofa espera ter impactado a vida dos seus participantes
Gabriel Tarso/Divulgação
Já planejando novas expedições, Aretha espera que os quatro integrantes da Sankofa tornem-se multiplicadores do montanhismo em seus grupos sociais.
– Eu entendo que todos eles voltaram realizados e se tornaram multiplicadores para que mais pessoas pratiquem essa atividade. Serão também multiplicadores da cultura africana e com muito orgulho, porque o que a gente vivenciou ali, além de chegar ao limite e conectar com a natureza, foi um mergulho na nossa história. A gente vê beleza negra ali presente. A gente vê pessoas resistentes ali. Então são muitos motivos para a gente se orgulhar da nossa origem, da nossa ancestralidade. Esse empoderamento, com certeza, transforma a realidade de todos os participantes. Tenho a certeza de que todos voltaram mais encorajados, mais empoderados e tenho certeza que a vida é feita cheia de desafios, a vida é feita cheia de obstáculos, mas nenhum deles pode nos limitar, pode nos parar – conclui.
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