O vilarejo espanhol ‘perdido’ na França que tem língua própria
Geograficamente, o Val d’Aran da Espanha deveria fazer parte da França — mas não é francês, espanhol nem catalão no que se refere à sua cultura, história ou até mesmo idioma. Geograficamente, este pequeno vale montanhoso, com sua população de 10 mil habitantes, deveria estar na França.Mas Val d’Aran é a única comunidade dentro das fronteiras contíguas da Espanha que está localizada na encosta norte dos Pirineus.
Getty Images via BBC
As fronteiras são supostamente simples nos Pirineus. No lado sul da cordilheira, você está na Espanha. No lado norte, na França.
Visite Val d’Aran, no entanto, e a geopolítica assume contornos mais complicados.
Val d’Aran está do lado errado da cadeia de montanhas. Geograficamente, este pequeno vale montanhoso, com sua população de 10 mil habitantes, deveria estar na França.
Mas Val d’Aran é a única comunidade dentro das fronteiras contíguas da Espanha que está localizada na encosta norte dos Pirineus.
Oficialmente, Val d’Aran está dentro das fronteiras administrativas da Catalunha, mas apesar deste vale estar preso entre reinos e estados-nação maiores por séculos, nunca renunciou à sua identidade local.
O segredo para esta identidade local é o aranês, que assim como o catalão e o espanhol, é oficialmente reconhecido como a terceira língua da Catalunha.
Cerca de 40% dos moradores de Val d’Aran falam aranês, um dialeto distinto da língua occitana
Getty Images via BBC
“Somos araneses porque falamos aranês”, disse de forma apaixonada Jusèp Loís Sans Socasau, quando entrei em seu escritório em Vielha, capital de Val d’Aran.
Era início de dezembro, e as camadas de neve se tornavam cada vez mais espessas, à medida que o vale se preparava para a temporada de esqui.
“Aranês é a língua do nosso vale”, acrescentou Sans Socasau.
“E é a língua da nossa cultura.”
Sans Socasau é o presidente do Institut d’Estudis Aranese (Instituto de Estudos Araneses) e seu escritório estava repleto de manuscritos históricos, dicionários e romances em aranês.
“Aranês é uma língua de base românica”, ele explicou, enquanto eu me aquecia com uma xícara de café.
“É muito próxima do latim, mas evoluiu de maneira muito diferente do espanhol e do francês.”
O aranês é um dialeto distinto da língua occitana, que, em seu apogeu medieval, era falada dos Pireneus ao Piemonte, localizado no que hoje é o norte da Itália.
“Este era o território da língua occitana”, afirmou Sans Socasau orgulhoso, apontando para um mapa histórico.
“E era o território dos Trovadores.”
Nos séculos 11 e 12, houve uma explosão de poesia occitana em toda a Europa.
A língua foi amplamente difundida pelos trovadores, poetas e escritores de língua occitana que compunham e representavam romances medievais.
Até mesmo Ricardo 1º da Inglaterra — mais conhecido como Ricardo Coração de Leão, que possuía terras na França — falava occitano como primeira língua (sua mãe, Eleanor de Aquitânia, vinha de uma região de língua occitana).
Nos séculos seguintes, no entanto, o occitano seria substituído por outras línguas, e no sul da França, onde ainda existem dezenas de milhares de falantes de occitano, a língua nunca foi oficializada ou recebeu proteção governamental.
Em Val d’Aran, a língua occitana sobreviveu como o aranês, e números do governo sugerem que cerca de 4 mil moradores de Val d’Aran — cerca de 40% da população —sabem ler, escrever e falar aranês.
Apesar de ter sido reprimido mais recentemente durante o regime de Francisco Franco, que durou até a morte do ditador em 1975, o aranês recebeu reconhecimento oficial quando Val d’Aran ganhou autonomia do governo catalão em 1991.
E, em 2010, o aranês foi proclamado língua co-oficial junto ao espanhol e catalão, não apenas em Val d’Aran, mas em toda a Catalunha.
Crianças em idade escolar em Val d’Aran estudam em aranês; há uma grande quantidade de literatura e artigos araneses; e programas de rádio e noticiários são transmitidos no idioma.
“A língua ainda vive aqui, em nosso vale”, disse Sans Socasau, cuja filha viaja pela Europa cantando e compondo exclusivamente em aranês.
“E este é o único lugar em que a língua é protegida, onde é oficial.”
Como Val d’Aran é separado do resto da Espanha pelos Pirineus, minha viagem de ônibus de seis horas a partir de Barcelona, no inverno, só foi possível graças a um túnel de 5 km pelas montanhas que foi inaugurado em 1948.
Quando cheguei, a neve cobria os cumes das montanhas que cercam Vielha, enquanto as construções, com seus telhados inclinados, eram bem diferentes dos telhados planos da capital da Catalunha.
Considerando todos os aspectos, “remoto” parecia uma boa descrição e, sem dúvida, pensei, este isolamento era a causa da sobrevivência da língua aranesa.
Carla del Valle, especialista em estudos medievais e diretora do Musèu dera Val d’Aran, me disse o contrário.
“Tradicionalmente, diz-se que Val d’Aran é um lugar isolado, e é por isso que preservamos nossa cultura única.”
Vielha, capital de Val d’Aran, foi construída ao longo do Rio Garona, que deságua no Oceano Atlântico
Getty Images via BBC
“Mas isso não é realmente verdade, porque Val d’Aran sempre foi um lugar de comércio. É um vale de comunicação, não de isolamento”, afirmou.
Del Valle explicou como o aranês sobreviveu apesar da influência de outras línguas, muitas das quais estão presentes em Val d’Aran.
Ela, assim como a maioria dos araneses que conheci no vale, é poliglota. E brincou dizendo que falava quatro línguas e meia: aranês, catalão, espanhol, inglês e um pouco de francês.
No museu, os painéis informativos são escritos em três idiomas: aranês, catalão e espanhol. Exibidas uma ao lado da outra, as semelhanças e diferenças entre as três línguas românicas se tornam mais aparentes.
A diferença mais óbvia está nas preposições. Por exemplo, a frase “Legado Artístico” foi escrita em espanhol como “El Legado Artistico”. Em catalão, virou “El Llegat Artistic”, enquanto em aranês, era “Eth Legat Artistic”.
Del Valle explicou que antes da construção do túnel que liga Val d’Aran à Espanha, os araneses sempre recorriam à França para o comércio.
Até a Revolução Francesa do século 18, Val d’Aran também era administrada religiosamente por bispos da Diocese de Saint-Bertrand-de-Comminges, na França.
Politicamente, no entanto, Val d’Aran está há séculos alinhada com os reinos espanhóis, que sempre buscaram conquistar a porta de entrada para a Catalunha.
Fortemente independente, Val d’Aran jogou reinos maiores uns contra os outros e sempre prometeu lealdade ao governante que concedia ao vale mais privilégios.
Em 1313, Val d’Aran assinou a Querimonia, um documento no estilo da Carta Magna que outorgava ao vale a semi-independência.
A Querimonia foi empregada em 1991, quando Val d’Aran obteve novamente seu direito histórico de autonomia após ser integrado à Catalunha no século 19.
“É tudo muito Game of Thrones”, disse del Valle com uma risada.
“A história de Val d’Aran pode ser simplificada em lutar e depois negociar. Sempre tentando permanecer independente. Mas não tivemos tanto sucesso quanto Andorra. Eles foram bem-sucedidos lá, e ainda são independentes. E agora pagam menos impostos do que nós!”
A bandeira aranesa tremulava orgulhosamente do lado de fora dos escritórios do Conselho Geral de Aran, o governo autônomo local, onde me encontrei com Juan Manuel Morell, que trabalha para o conselho de turismo.
Ele explicou como a geografia não apenas moldou a história de Val d’Aran, como influenciou o que significa ser aranês.
“Aqui, tudo se resume às montanhas e à neve”, afirmou Morell.
Val d’Aran tem um clima atlântico em vez de um clima mediterrâneo, resultado do Rio Garona que flui pelo vale em sua longa jornada até Bordeaux, onde eventualmente deságua no Oceano Atlântico.
“Val d’Aran é o único vale voltado para o Atlântico em toda a Catalunha”, acrescentou.
“E isso faz de você diferente.”
Para conhecer a cultura serrana da região, Marta Peruga, que trabalha no centro de informações ao turista de Vielha, recomendou visitar a vila de Bagergue, que, a 1.424m de altitude, é a vila mais alta da Catalunha.
“Desça do ônibus em Salardu”, ela me disse.
“Depois pegue a trilha de caminhada até Bagergue. É um passeio lindo, mesmo na neve, e no topo você pode experimentar o queijo!”
Mas a trilha estava coberta de neve quando saltei do ônibus. Sem sapatos adequados para neve ou esqui cross-country, peguei a estrada pavimentada de 2 km.
As igrejas se erguem bem acima de todas as vilas de Val d’Aran, e havia uma bem alta na entrada de Bagergue.
Construídas no estilo românico que era popular na Idade Média, as igrejas de Val d’Aran foram erguidas não apenas como locais de culto, mas como castelos, torres de vigilância e fortalezas destinadas a guardar a fronteira.
Bagergue é onde está localizada a queijaria de maior altitude da Catalunha, em que os produtores locais reviveram uma receita tradicional das montanhas, que voltou a ser popular em Val d’Aran.
Ao mesmo tempo que são um testemunho do clima e da cultura de esqui alpina, as vilas pelas quais passei para chegar a Bagergue — Salardu e Unha — tinham um museu dedicado à exploração dos Pirineus e um museu dedicado exclusivamente à neve.
Morell disse que até 92% da economia do vale depende do turismo: trilhas, mountain bike e rafting no verão; e esportes de neve no inverno.
Apesar do status oficial e das proteções legais à língua, Sans Socasau mencionou que o aumento do turismo e da imigração em Val d’Aran estava fazendo com que o aranês fosse lentamente expulso por línguas maiores, como o espanhol.
“Não há pessoas suficientes falando aranês”, disse Sans Socasau.
“Apenas cerca de 20% das pessoas em Val d’Aran falam a língua regularmente, em casa. A língua está em perigo e, em 20 ou 30 anos, pode nem sequer existir.”
Del Valle vê as coisas de forma diferente.
Mesmo que ela fale espanhol ou catalão como forma de se comunicar com turistas ou recém-chegados, ela também fala aranês no trabalho — e sabe que a segunda geração das famílias migrantes que se estabelecem em Val d’Aran aprendem e são ensinadas em aranês na escola.
De fato, o governo estima que cerca de 80% das pessoas que vivem no vale entendem aranês, mesmo que não falem sempre.
“Se você falar com o presidente da sociedade de língua aranesa, ele dirá que o aranês está prestes a morrer”, afirmou del Valle.
“Mas o aranês é uma língua oficial em toda a Catalunha. Isso dá algum poder à nossa língua, e mesmo que a gente possa falar catalão ou espanhol no vale para entender uns aos outros, não acho que o aranês esteja em perigo, pelo menos não tão cedo.”g1 > MundoRead More