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Busca por liberdade e recomeço: afegãos relatam fuga do Talibã e tentativa de ‘nova vida’ no Brasil

Brasil publicou em 2021 portaria para visto humanitário temporário para cidadãos afegãos; foram concedidos 6.159 vistos do tipo até 16 de setembro deste ano, diz o Itamaraty. Talibã é grupo extremista que surgiu há quase 30 anos. Jornalista afegão com sua mulher e filhos na chegada ao Brasil
Fábio Tito/g1
Há um ano, o regime Talibã, grupo fundamentalista islâmico, tomou o controle de quase todo o Afeganistão e voltou à capital, Cabul, 20 anos após ter sido expulso pelas forças ocidentais lideradas pelos Estados Unidos. O presidente Ashraf Ghanifugiu teve de deixar o país, e o palácio presidencial foi tomado em 15 de agosto de 2021.
Naquele mês, afegãos se aglomeraram em aeroportos na tentativa de fugir do país. Entre eles, estava um jornalista de 28 anos que trabalhava como apresentador em um canal de televisão e decidiu ir com a família para o Irã.
Após viver com os iranianos por um ano, ele resolveu tentar uma nova vida no Brasil, assim como centenas de outros conterrâneos, depois que, em setembro de 2021, o governo federal publicou uma portaria para visto humanitário.
Na última sexta-feira (16), ele chegou ao Aeroporto Internacional de São Paulo, em Guarulhos, com a mulher, o filho de 4 anos e a filha, de apenas 7 meses.
“Depois que o Talibã tomou o Afeganistão, fiz o pedido de visto para estudar psicologia dentro do Irã. A universidade é paga. Eu consegui manter a universidade por um ano. Depois não tive mais condições de pagar. Iranianos deram opção para eu trabalhar apenas na construção civil. Tornou-se uma situação insuportável, e eu preferi vir embora para o Brasil, que é um país livre”, relatou o jornalista ao g1, que prefere ter a identidade preservada por medo de sofrer represálias.
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No dia em que o ex-apresentador chegou ao país, ele encontrou dezenas de afegãos acampados no saguão do aeroporto à espera de acolhimento, já que os abrigos de Guarulhos ficaram lotados com a maior quantidade de imigrantes no país desde agosto.
“Quando vi a situação no aeroporto, a gente perdeu um pouco da esperança de conseguir algo. Não era para encontrar o povo sem assistência. Mas eu tenho ainda esperança no Brasil de poder trabalhar na minha área no jornalismo. Infelizmente, minha mãe e o meu pai estão no Afeganistão. Por isso, não posso me identificar. Porque, se localizam a minha família, podem oprimir”, explica.
Na noite de sexta (6), ele e os outros 90 afegãos foram encaminhados para um Centro de Acolhida Especial para Famílias (CAE) na Zona Leste da capital paulista.
Afegão vai para o Brasil tentar nova vida com a família
Fábio Tito/g1
Discriminação
Outro afegão, de 30 anos, relatou ao g1 que era diretor de uma empresa comercial e decidiu vir para o Brasil no começo de setembro depois de ficar oito meses no Irã. Ele também preferiu ter a identidade preservada.
“Os iranianos discriminam diretamente o povo do Afeganistão. Pesquisei na internet que seria uma boa opção vir para o Brasil. O custo [da viagem] saiu US$ 2 mil. Agora, não tenho mais como sair daqui. O dinheiro que a gente investiu foi para vir para cá. Não tenho como ir para outro lugar. Pedimos que o governo brasileiro dê um lugar decente para morar, ensinem português. A gente mesmo vai procurar trabalho. A gente não está em busca de benefícios gratuitos. Precisamos de um lugar decente para viver e aprender o idioma para trabalhar”, relatou, antes de ser informado que seria encaminhado para o Centro de Acolhida.
Afegãos contam sobre fuga do regime Talibã e vinda ao Brasil
Fábio Tito/g1
Liberdade e direitos
Quando os talibãs tomaram o Afeganistão nos anos 1990, as mulheres não podiam trabalhar nem estudar e tinham de ficar confinadas em casa. Era obrigatório, ainda, que elas usassem burca, vestimenta que deixa apenas os olhos à mostra.
Além disso, os homens tiveram de deixar a barba crescer, livros ocidentais foram proibidos e artefatos culturais, vistos como blasfêmias pelo Islã, foram destruídos.
ENTENDA: o que é o Talibã
Desde a retomada, no ano passado, o regime Talibã ainda trouxe a tortura ao cotidiano. Por isso, um universitário afegão que tem duas irmãs resolveu fugir do país com a família e recomeçar na América do Sul. Eles chegaram ao Brasil na sexta-feira (16).
“Entre as pesquisas, o Brasil era o país mais acolhedor. A minha irmã é professora. Apesar de ser na mesma religião, língua, o Irã coloca o povo afegão na construção de prédio, para varrer a rua, mas não dá direito de dirigir, não pode alugar uma casa, tem limitação para tudo. Por dirigir um carro, tomei multa e, até sair do Irã, por ser afegão, tive que pagar uma multa por sair. Povo do Irã tem preconceito. Não tem como ficar no país. Queremos mais liberdade”, relatou o universitário.
Afegãos no Aeroporto de Cumbica, em Guarulhos
Fábio Tito/g1
Outro jornalista afegão, de 26 anos, também conta que resolveu fugir para o Brasil para ter mais direitos.
“Quando o Talibã assumiu, eles fizeram uma limpa em quem apoiava o regime anterior. Começaram a matar e desaparecer com essas pessoas. Por isso, tive que sair do país, minha vida corria perigo. Eles colocaram apoiadores em todos os cargos, como nos jornais e serviços públicos”, relata.
“A maioria de nós foi para o Irã e depois decidiu vir para o Brasil. No Irã ninguém quer ficar, é impossível. No Brasil, temos o objetivo de o governo ajudar por uns três meses, aprender o idioma e girar com a vida aqui. Não viemos para ficar parados, encostados. Queremos recomeçar nossa vida.”
Vinda ao Brasil
O pedido de visto humanitário, diferentemente do de refúgio, tem de ser feito fora do Brasil, em uma autoridade consular. No caso do Afeganistão, a mais próxima é a Embaixada brasileira em Islamabad, no Paquistão.
Grávida de 9 meses e bebês dormem no chão do aeroporto de Guarulhos em acampamento
Novos afegãos chegam ao Aeroporto de Guarulhos e esperam acolhimento
O Jornal Hoje mostrou no dia 12 de setembro que 153 afegãos entraram no país em agosto. No mesmo dia, 52 afegãos chegaram a Guarulhos e também ficaram no aeroporto, pois não tinham dinheiro. Desde janeiro, foram mais 400.
Famílias afegãs no Aeroporto de Guarulhos
Fábio Tito/g1
Porém, sem dinheiro e com abrigos de Guarulhos lotados, famílias inteiras ficam dias acampadas nos saguões à espera de acolhimento. A situação preocupou os ativistas, como a Swany Zenobini, que acompanha a situação desde 19 de agosto e trabalha no enfrentamento de tráfico humano.
“Eu já vi mulheres grávidas dormindo no chão, eu já vi bebês de 2 meses de idade tendo que dormir no chão porque não está tendo colchonete, não está tendo colchão, pelo menos temos que dar o mínimo de conforto para essas pessoas. Esse problema da falta de moradia aos refugiados afegãos é recorrente”.
“Pessoas vulneráveis, que tem a barreira linguística, que não falam o idioma e que precisam desesperadamente encontrar um lugar. Então, quando você vem com a proposta de uma casa, é natural que um pai de família aceite essa proposta, por mais que tenha algum receio. Então, a gente precisa estar atenta sim, porque essa situação que está acontecendo está deixando todas as pessoas vulneráveis ao aliciamento ao tráfico de pessoas”, ressalta.
Ativista Swany Zenobini
Fábio Tito/g1
Uma das entidades que está ajudando as famílias que chegam ao aeroporto é a Cáritas. Desde outubro, ela já atendeu 400 afegãos e diz que é necessário mais políticas públicas para tratar essa questão.
“Existe a necessidade realmente de uma ação do governo federal de motivar os governos estaduais e municipais para pensar em políticas públicas para pensar nos abrigos e na tipificação dos abrigos para que possam acolher essa população imigrante e refugiada”, diz o padre Marcelo Marostica, diretor da Cáritas Arquidiocesa de São Paulo.
O sheik brasileiro Rodrigo Jalloul destaca a importância de ter ações para ajudar os afegãos que entram no país.
“Governo dar visto de para 5 mil afegãos para tirá-los de um inferno do regime Talibã para trazer para outro inferno não está certo. Ou fazemos as coisas direito ou melhor não se prontificar. Estou em contato com eles e acompanhando a situação. Estamos aqui para amparar de acordo com nossa condição”.
Sheik Rodrigo Jalloul conversando com afegãos no Aeroporto de Guarulhos
Fábio Tito/g1
Acolhimento
Depois da repercussão, na última sexta-feira (16) mais de 90 afegãos foram encaminhados para um Centro de Acolhida Especial para Famílias (CAE), na Zona Leste da capital paulista. A operação humanitária foi articulada pelo Ministério Público Federal (MPF) com diversas instituições.
O local está sendo custeado pela Prefeitura de São Paulo, e o transporte, feito por dois ônibus, foi pelo governo do estado, segundo a Prefeitura de Guarulhos.
Afegãos acampados em Guarulhos são levados para hotel em São Paulo
Segundo a Prefeitura de São Paulo, 221 afegãos estão acolhidos na cidade, incluindo as famílias já encaminhadas ao hotel.
“Além disso, outros cinco afegãos que já compreendem a língua portuguesa serão transferidos do Clube Municipal Vila Independência para o hotel a fim de auxiliar os novos acolhidos”, diz a nota.
Afegãos que fugiram do regime Talibã e chegaram no Brasil
Fábio Tito/g1
O comunicado também informou que a gestão do serviço ficará com a Comunidade Educacional de Base Sítio Pinheirinho (Cebasp) ao custo mensal de R$ 187,4 mil.
“Importante ressaltar que do total de R$ 50 milhões aportados pelo Governo do Estado ao munícipio para ampliação de vagas de acolhimento em hotéis, a gestão municipal utilizará pouco mais de R$ 3 milhões na adequação e custeio desta nova unidade.”
Ações emergenciais
Famílias afegãs no Aeroporto de Guarulhos
Fábio Tito/g1
Contudo, o acolhimento não se encerra com a concessão do visto. A Defensoria Pública da União acompanha a situação e diz que é preciso mais ações emergenciais para que os imigrantes sejam devidamente recebidos. Neste domingo (18), mais imigrantes chegaram no país e tiveram que dormir no aeroporto na madrugada.
Ao g1, o coordenador de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública da União em SP, João Chaves, retratou que, com o aumento de chegadas, houve um déficit de acolhimento e falta de equipamento público. Porém, para ele, o país precisa cumprir o comprometimento internacional de que ajudaria afegãos e se preparar para a chegada de novos imigrantes.
“Não há equipamento público para abrigar essas pessoas. É um abrigamento muito específico, porque tem que ser de famílias inteiras, não pode ser separada. Todas estão em situação regular, têm direito de ficar no Brasil, estão em situação de acolhida humanitária e esperam que o poder público cumpra essa função. A Defensoria está aqui para orientar sobre documentos, direitos que essas pessoas têm e fazer essa mediação”, afirma.
São Paulo: 109 imigrantes afegãos são abrigados em um hotel na capital
Para Chaves, os municípios de Guarulhos e São Paulo, além do estado, têm estrutura para abrigar os afegãos e quem chegar nos próximos dias.
“Agora, é necessário ter um plano emergencial e que tenha solução rápida. Não há como prever quantas pessoas chegam a cada dia, e é esperada que essa chegada seja acelerada. Por isso, é preciso ter medidas para que a situação no aeroporto não se agrave, para que o aeroporto não se torne local de acolhimento.”
“Desde o final de 2021, o Brasil editou a portaria com direito de visto humanitário. Ao longo de 2022, várias pessoas conseguiram os vistos e, aos poucos, estão vindo para cá. Essa chegada não foi repentina, ela foi esperada. Por isso, o Brasil tem obrigação de ter solução. Ainda há pessoas com vistos que vão chegar”, enfatiza.
Entrevistas suspensas
A Defensoria Pública informa que recomendou, no começo de setembro, por meio de petição, que o Ministério das Relações Exteriores retome o agendamento de vistos, que foi suspenso nas Embaixadas do Brasil em Teerã, no Irã, e Islamabad, no Paquistão.
“As entrevistas continuam sendo feitas, mas não há novos agendamentos. Por conta disso, este mês a Defensoria fez uma recomendação que se justifique os motivos para que seja feito um plano de emergência de emissão de vistos. Estamos trabalhando em duas pontas na acolhida humanitária, como a da emissão de vistos e a da assistência social na chegada a São Paulo. A acolhida humanitária não é um favor do governo brasileiro, é um direito aprovado na lei de imigração em 2017”, destaca o defensor.
Coordenador de Migrações e Refúgio da Defensoria Pública da União em SP, João Chaves
Fábio Tito/g1
Na petição, a qual o g1 teve acesso, a Defensoria Pública da União alega que “houve um acréscimo significativo de e-mails recebidos de pessoas nacionais do Afeganistão, com requerimento de visto já preenchido, e em situação de desespero ou grave ameaça por força da demora no agendamento de entrevistas”.
“Ao que se constata, há uma demanda reprimida ainda não devidamente mensurada, e diversas informações apontam para a saturação da agenda de entrevistas. Ou seja, não seria mais possível o agendamento em curto ou médio prazos, com relatos de que a agenda está fechada ou que só estaria disponível para 2023”, diz o órgão.
A petição ainda ressalta que, uma vez criada a norma para acolhida humanitária, é dever que o país ofereça a emissão de vistos.
“Causa preocupação que o Brasil tenha reconhecido, por norma do Poder Executivo, situação de emergência e crise humanitária, comprometendo-se com o fornecimento de vistos para pessoas nacionais do Afeganistão e, ao que se percebe até o momento, não tenha tratado na prática o tema como prioritário. Seria esperado o aumento da capacidade de emissão de vistos, seja pelo incremento de recursos humanos ou pela simplificação de procedimentos, para dar vazão à demanda reprimida nos dois postos consulares, mas até o momento não há prova disso.”
O que diz o Itamaraty
Em nota, o Itamaraty informou que “a eventual suspensão temporária dos agendamentos, como foi o caso nas embaixadas em Teerã e Islamabad recentemente, e a disponibilização de novas vagas são decididas com vistas a assegurar a eficiência e a continuidade da prestação dos serviços consulares”.
Veja a nota completa:
“A Portaria Interministerial nº 24 do Ministério da Justiça e Segurança Pública e do Ministério das Relações Exteriores, datada de 3 de setembro de 2021, autorizou a concessão de visto temporário e de autorização de residência para fins de acolhida humanitária para nacionais afegãos, apátridas e pessoas afetadas pela situação de crise humanitária enfrentada pelo Afeganistão.
Trata-se de avanço substantivo na política migratória nacional, ao reforçar os vínculos de solidariedade com o povo afegão. Distingue-se da política humanitária praticada por outros países, por não limitar número de concessão de vistos a nacionais afegãos. É igualmente digno de nota que o visto é emitido de forma gratuita.
As embaixadas em Islamabad, Teerã, Moscou, Ancara, Doha e Abu Dhabi estão habilitadas a processar os pedidos de visto para acolhida humanitária. Até o dia 16 de setembro de 2022, o governo brasileiro autorizou a concessão de 6.159 vistos humanitários para os afegãos contemplados pela política.
As Embaixadas em Teerã e Islamabad são as que mais concederam vistos a nacionais afegãos. Ademais, a Embaixada do Brasil em Teerã foi a que mais concedeu vistos quando comparada a toda a rede de Postos brasileira, superando a produção de vistos de Embaixadas e Consulados brasileiros em países superpopulosos, como a Índia e a China.
Em relação às entrevistas para solicitação do visto, novos agendamentos são disponibilizados de acordo com a capacidade de processamento das Embaixadas. A eventual suspensão temporária dos agendamentos, como foi o caso nas Embaixadas em Teerã e Islamabad recentemente, e a disponibilização de novas vagas são decididas com vistas a assegurar a eficiência e a continuidade da prestação dos serviços consulares.
Há, neste momento, 1.204 entrevistas de visto para acolhida humanitária agendadas para até 11/01/2023 na Embaixada do Brasil em Islamabad. Na Embaixada em Teerã, por sua vez, haviam sido preenchidos 4.883 agendamentos até o dia 13 de junho de 2022. As entrevistas nos Postos nunca foram interrompidas. Por exemplo, em média, são realizadas 50 entrevistas, diariamente, na Embaixada do Brasil no Irã.
Servidores do quadro do Ministério das Relações Exteriores foram designados em missões transitórias, a fim de contribuir para o processo de recepção, análise e decisão dos pedidos de visto. Auxiliares de outros setores das Embaixadas, como promoção comercial, administração e demais servidores foram também diretamente envolvidos no processo de acolhida humanitária em favor de afegãos. Igualmente, a administração do Itamaraty autorizou a contratação de auxiliares administrativos e tradutores terceirizados.
À luz do exposto, o governo brasileiro reitera o seu o compromisso com a política humanitária em tela, fato que é reforçado pela emissão de números de vistos humanitários sem precedentes durante a vigência da nova Lei de Migração, de 24 de maio de 2017.”
O que diz o Ministério da Cidadania
O Ministério da Cidadania afirma que mantém contato com a Secretaria Municipal de Assistência Social de Guarulhos para orientar e oferecer apoio técnico. Disse também que a cidade vai ser contemplada na nova portaria de repasse de recursos emergenciais para atendimento socioassistencial de imigrantes e refugiados.
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