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Os 11 dias da visita da rainha Elizabeth II ao Brasil, em 1968

Durante a estada no país, ela e o Príncipe Philip, o Duque de Edimburgo, ganharam LPs de música MPB, um berimbau e até um casal de onças. Também assistiram a jogo de futebol e cumprimentaram Pelé. Rainha Elizabeth conheceu o jogador Pelé durante visita ao Brasil em 1968.
Arquivo Nacional via BBC
“Majestade, este é o jogador Pelé, famoso mundialmente”, apresentou Lael Soares, o chefe do cerimonial do Palácio Guanabara, a sede oficial do governo do Rio de Janeiro. “Ah, eu sei!”, sorriu a rainha, estendendo a mão. “Já o conheço de nome. E me sinto muito feliz em cumprimentá-lo”.
“Diz para ela que estou emocionado por ter participado de um jogo que contou com a sua presença”, pediu Pelé, meio sem jeito, ao intérprete real. “Diga para ele que a felicidade é minha”, respondeu a rainha, com outro sorriso.
O diálogo acima, reproduzido na edição do dia 11 de novembro de 1968 do jornal ‘O Globo”, marcou um autêntico encontro real. De um lado, a Rainha Elizabeth II, então com 42 anos de idade e 16 de reinado, em sua primeira e única visita ao Brasil, entre os dias 1º e 11 de novembro de 1968, em plena ditadura militar.
De outro, o ‘Rei’ Pelé, com apenas 28 anos e já bicampeão do mundo, título conquistado nas Copas de 1958, na Suécia, e de 1962, no Chile. Dali a um ano e sete meses, ganharia o tricampeonato, no México, em 1970.
A rainha Elizabeth 2ª, monarca mais longeva do Reino Unido, morreu na quinta-feira (08/09) aos 96 anos, depois de reinar por 70 anos.
Em 1968, Pelé e a rainha se encontraram na Tribuna de Honra do Estádio Mário Filho, o Maracanã, depois de uma partida entre as seleções do Rio e de São Paulo. Os paulistas venceram a disputa por 3 a 2. Pelé, o capitão da seleção paulista, marcou um dos gols, o 900º de sua carreira, aos 39 do primeiro tempo.
Gérson, o capitão da seleção carioca, chegou a treinar algumas palavras em inglês para saudar a Rainha. Mas, na hora de cumprimentá-la, o ‘Canhotinha de Ouro’ desistiu. Teve medo de dizer bobagem.
A Rainha Elizabeth 2ª assistiu ao jogo ao lado do marido, o Príncipe Philip (1921-2021), e do governador da Guanabara Negrão de Lima (1901-1981). Para não perder nenhum lance, retirou um binóculo de sua inseparável Launer, sua marca de bolsa favorita. Em sua coleção, tem mais de 200 modelos.
A certa altura, o Duque de Edimburgo quis saber do que os torcedores estavam chamando, aos berros, o juiz da partida, Armando Marques (1930-2014). Constrangidos, Maneco Muller e Evandro Guerreiro, representantes da Administração dos Estádios da Guanabara (ADEG), não souberam o que responder.
“São expressões pejorativas”, gaguejou Guerreiro. Logo, o embaixador da Inglaterra no Brasil, Sir John Russell (1914-1984), traduziu, um por um, os “gritos inadequados e sem educação”, nas palavras do jornal carioca, dos torcedores do maior do mundo.
Durante a estada no país, ela e o Príncipe Philip, o Duque de Edimburgo, ganharam LPs de música MPB, um berimbau e até um casal de onças.
Arquivo Nacional
“O futebol nasceu na Inglaterra, mas, certa vez, no Maracanã lotado com 100 mil pessoas, nós tivemos a honra de mostrar a beleza do futebol brasileiro para a Realeza Britânica. Eu guardo este dia com carinho na memória”, postou Pelé, em suas redes sociais, no dia 9 de abril de 2021, data da morte do Príncipe Philip.
Em sua única visita ao país, a Rainha da Inglaterra conheceu seis cidades em 11 dias
O jogo no Maracanã, visto por 105,7 mil espectadores, foi o último compromisso oficial no Brasil. A viagem começou no dia 1º de novembro e percorreu seis cidades: Recife (PE), Salvador (BA), Brasília (DF), São Paulo (SP), Campinas (SP) e Rio de Janeiro (RJ). “Até hoje, é a única viagem de um monarca britânico à América do Sul e, só por isso, ela já é muito importante”, afirma o Embaixador do Brasil em Londres, Fred Arruda.
“Foi uma visita que teve vários aspectos. Além dos encontros governamentais, houve vertentes de ciência e tecnologia, de cultura e até mesmo de infraestrutura. Mas, sobretudo, eu diria que a viagem foi desenhada para aproximar os brasileiros do Reino Unido, usando o magnetismo do casal real. E isso funcionou muito bem: a Rainha e o Duque de Edimburgo arrastaram multidões por onde passaram”.
A Rainha Elizabeth II chegou ao Brasil, a bordo de uma aeronave da Real Força Aérea, um modelo VC-10, às 16h15. Vindo do México, onde assistiu aos Jogos Olímpicos, o Príncipe Philip desembarcou no Aeroporto de Guararapes, no Recife, 15 minutos antes. Do aeroporto, eles seguiram para o Palácio do Campos das Princesas, onde foram recebidos pelo governador Nilo Coelho (1920-1983).
Rainha percorreu seis cidades em 11 dias. Foi a única visita de um monarca britânico à América do Sul.
Arquivo Nacional
Participaram da recepção, entre outros, o escritor e antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), autor de Casa-Grande & Senzala (1933), e o religioso Dom Hélder Câmara (1909-1999), arcebispo de Olinda e Recife. Segundo o diplomata Marcos Azambuja, autor do posfácio do livro O Protocolo Perde Para o Carinho — A Visita da Rainha Elizabeth II ao Brasil pelos Olhos da Imprensa (2018), não foi fácil convencer Dom Hélder Câmara a prestar homenagem em público à visitante ilustre.
“Ele relutava não por qualquer desapreço à Rainha, mas porque não queria contribuir para momentos que seriam prestigiosos para um governo cuja legitimidade questionava”, explica Azambuja no livro.
Durante a recepção, um apagão deixou a cidade do Recife às escuras por 25 minutos. O almoço prosseguiu à luz de velas. “O acender dos candelabros dá a este momento histórico um magnífico toque vitoriano”, gracejou o então deputado estadual e futuro vice-presidente Marco Maciel (1940-2021).
A caminho do cais do porto, quando o cortejo real passou diante da sede do Diário de Pernambuco, o mais antigo periódico em circulação na América Latina, a Rainha pediu que o carro parasse e acenou para os funcionários. O jornal faz parte do grupo Diários Associados, fundado pelo empresário Assis Chateaubriand (1892-1968). Entre 1957 e 1961, durante o governo JK, Chatô, como era mais conhecido, serviu como embaixador do Brasil no Reino Unido. À época, presenteou Sua Majestade com um colar e um par de brincos de água-marinha.
Às 18h30, a Rainha Elizabeth e o Príncipe Philip embarcaram no Britannia, o iate real da Marinha Inglesa, e seguiram para Salvador, onde chegaram às 7h do dia 3, um domingo. Na capital baiana, foram recebidos pelo governador Luís Viana Filho (1908-1990) no Palácio da Aclamação. O escritor Jorge Amado (1912-2001) e o artista plástico Carybé (1911-1997) compareceram à cerimônia.
Visita real ocorreu em plena ditadura militar. Por isso, Dom Helder Câmara relutou a participar de homenagem à rainha.
Arquivo Nacional
Batizado de Britannia, o iate da família real britânica funcionava como uma “embaixada flutuante”
Dois dos 11 dias de viagem — o sábado, dia 2, e a segunda, dia 4 — foram a bordo do HMY Britannia (ou “Her Majesty Yacht Britannia”, seu nome oficial). Construído em 1953, o Britannia funcionava como uma espécie de “embaixada flutuante” do Reino Unido. Ao longo de seus 44 anos de serviços prestados à Coroa, o barco realizou 968 viagens oficiais para 153 países.
“Com 125 metros de comprimento, o iate real tinha três cozinhas, uma delas só para preparar as refeições da rainha; uma lavanderia industrial e um centro médico”, revela o jornalista e pesquisador Jorge de Souza, autor de Histórias do Mar — 200 Casos Verídicos de Façanhas, Dramas, Aventuras e Odisseias nos Oceanos (2019). “Só a tripulação, entre oficiais, marinheiros e camareiras, contava com 220 pessoas”.
O Britannia foi aposentado em 1997. Desde então, está aberto a visitação pública, em Edimburgo, na Escócia.
Em Salvador, o casal visitou a Igreja de São Francisco, o Museu de Arte Sacra e o Mercado Modelo. O lojista Américo Oliveira Lopes furou o esquema de segurança e entregou ao Duque de Edimburgo um berimbau de presente. Às 12h35, os visitantes retornaram ao Britannia e seguiram viagem até o Rio de Janeiro. Uma procissão de 40 embarcações acompanhou o iate real até quase a saída da Baía de Todos os Santos.
Em Brasília, a Rainha Elizabeth II ganhou o mais inusitado presente da viagem: um casal de onças
O Britannia entrou na Baía de Guanabara na manhã do dia 5, terça-feira, e ancorou próximo à Ilha do Governador. Por volta das 10h30, a Rainha e o Duque de Edimburgo seguiram para Brasília. Às 12h15, chegaram à capital federal, onde foram recebidos pelo presidente da República, general Artur da Costa e Silva (1899-1969). A programação foi intensa e incluiu recepção no Palácio da Alvorada, sessão solene no Supremo Tribunal Federal (STF), pronunciamento no Congresso Nacional e banquete no Palácio Itamaraty.
No dia seguinte, o casal visitou, entre outros compromissos, um jardim de infância na Superquadra 308 Sul, a Catedral Metropolitana e a Embaixada do Reino Unido. Em retribuição aos cisnes reais que doou ao zoológico de Brasília, a rainha ganhou um presente inusitado do prefeito Wadjô Gomide (1932-2003): um casal de onças. Os felinos seguiram para Londres num voo da British United Airways.
Em fevereiro de 2019, durante a cerimônia de apresentação de suas credenciais como Embaixador, Fred Arruda presenteou a Rainha Elizabeth com uma medalha da Casa da Moeda alusiva à histórica viagem dela ao Brasil.
John Stillwell/ Embaixada do Brasil
“Um problema que pode parecer pequeno, mas era real, consistia em procurar evitar que a rainha, não afeita aos trópicos, ficasse exposta demais ao sol”, recorda o diplomata Marcos Azambuja. “Lembro-me dela em vários momentos de óculos escuros para enfrentar a intensa luminosidade do nosso Planalto Central”.
Às 13h, a Rainha Elizabeth deixou Brasília e, às 14h45, desembarcou em São Paulo. Entre outras atividades, conheceu o Monumento do Ipiranga e visitou o Edifício Itália.
Na capital paulistana, a programação incluiu shows de Wilson Simonal, Jair Rodrigues e Elza Soares
Rainha Elizabeth II inaugurou o Masp, foi a show com Elza Soares e Jair Rodrigues e conheceu o Museu do Ipiranga durante sua visita a SP
À noite, o governador do Estado, Abreu Sodré (1917-1999), ofereceu um banquete de boas-vindas no Palácio dos Bandeirantes. A rainha e o príncipe assistiram a uma apresentação dos cantores Wilson Simonal (1938-2000), Jair Rodrigues (1939-2014) e Elza Soares (1937-2022).
Juntos, os três encerraram o show cantando A Voz do Morro (1955), do sambista Zé Keti (1921-1999). “Ela gostou do samba, viu! Até quebrou o protocolo, marcando o ritmo com o pé. Que loucura essa vida!”, postou a cantora, em seu perfil no Twitter, no dia 6 de novembro de 2019.
Na quinta, dia 7, a visita incluiu a inauguração do Museu de Arte de São Paulo (MASP). “Logo ao entrar, a Rainha Elizabeth tomou um susto ao se deparar com um quadro de Winston Churchill (1874-1965), O Quarto Azul. Ficou ainda mais surpresa quando o crítico e historiador de arte Pietro Maria Bardi (1900-1999) afirmou que o Brasil foi o primeiro país a expor uma obra de arte pintada pelo ex-primeiro-ministro britânico”, explica o Embaixador do Brasil em Londres, Fred Arruda.
Às 13h40, a Rainha e o Duque de Edimburgo chegaram a Campinas, a 99 quilômetros da capital. Na cidade, conheceram o Instituto Agronômico e a Fazenda Santa Elisa. Passaram a noite na Estância Santa Eudóxia.
Na manhã do dia 8, sexta-feira, a rainha praticou um de seus hobbies favoritos: equitação. Apaixonada por cavalos, montou um alazão chamado Gorgue. Elizabeth Alexandra Mary, seu nome de batismo, ganhou seu primeiro pônei, da raça Shetland, de seu avô, o rei George V (1865-1936), quando completou quatro anos, em 1930.
Às 14h45, decolaram do Aeroporto de Viracopos, em Campinas, rumo ao Santos Dumont, no Rio de Janeiro, a última etapa da viagem, onde pousaram às 16h. À noite, o casal ofereceu, a bordo do Britannia, um jantar para cerca de 50 convidados.
Na bagagem, o casal real levou discos de Carmen Miranda, Pixinguinha e Noel Rosa
No sábado, dia 9, o Duque de Edimburgo visitou o Estaleiro Mauá, em Niterói, e a Rainha Elizabeth alguns pontos turísticos do Rio de Janeiro, como a Praia de Botafogo, o Mirante Dona Marta e o Outeiro da Glória. O governador Negrão de Lima homenageou os ilustres visitantes com um almoço para 200 convidados no Museu de Arte Moderna (MAM). Na ocasião, o anfitrião presenteou a rainha com alguns LPs de Música Popular Brasileira, como Pixinguinha (1897-1973), Carmen Miranda (1909-1955), Noel Rosa (1910-1937), Jacob do Bandolim (1918-1969) e Elizeth Cardoso (1920-1990), entre outros.
À tarde, a Rainha Elizabeth inaugurou o início das obras da Ponte Rio-Niterói e, à noite, assistiu a um desfile improvisado de Carnaval, com passistas e ritmistas da Estação Primeira da Mangueira, na Embaixada do Reino Unido, em Botafogo.
No domingo, dia 10, a rainha e o príncipe depositaram flores no Monumento aos Mortos da Segunda Guerra Mundial, no Aterro do Flamengo. Às 17h, depois de almoçarem no Britannia, seguiram para o Maracanã, onde assistiram ao jogo entre paulistas e cariocas. Na segunda pela manhã, embarcaram no Galeão, rumo ao Chile.
Dos brasileiros que conheceu em seus 11 dias de viagem, a Rainha Elizabeth concedeu o título de Cavaleiro da Ordem do Império Britânico a dois deles: o escritor Gilberto Freyre, em 1971, e o jogador Pelé, em 1997.
Em fevereiro de 2019, durante a cerimônia de apresentação de suas credenciais como Embaixador, Fred Arruda presenteou a Rainha Elizabeth com um exemplar do livro O Protocolo Perde Para o Carinho, uma coleção de selos comemorativos e uma medalha da Casa da Moeda alusiva à histórica viagem.
“Ficou claro que a Rainha guardava viva memória da viagem. Disse não acreditar que já haviam se passado 50 anos!”, relata o embaixador brasileiro em Londres. “Ela se lembrou de diversas passagens, como o lançamento da pedra fundamental da Ponte Rio-Niterói, a inauguração do MASP, seu passeio por Recife e Salvador… Lembrou de tudo sempre com um sorriso no rosto”.
* Este texto foi publicado originalmente em 4 junho 2022g1 > MundoRead More

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