Moscou e Beijing se aliaram para construir túnel secreto que conectaria a Rússia à Crimeia
Em meio a crescentes preocupações de segurança relacionadas à ponte sobre o Estreito de Kerch, executivos russos e chineses com vínculos governamentais foram descobertos realizando discussões secretas sobre um audacioso plano: a construção de um túnel subaquático conectando a Rússia à Crimeia. A revelação surgiu a partir de comunicações interceptadas no final de outubro pelos serviços de segurança da Ucrânia. As informações são do jornal The Washington Post.
A ponte, que tem 17 quilômetros e é fundamental para a logística militar russa, foi alvo de bombardeios ucranianos em duas ocasiões, motivando a busca por alternativas mais seguras para garantir a conectividade entre Moscou e a península anexada ilegalmente em 2014. Em um dos ataques, ocorridos em outubro, a estrutura foi danificada por um caminhão-bomba de propriedade de um morador da região de Krasnodar, no sul do país, segundo o Comitê de Investigação da Rússia.
A ideia de construir um túnel próximo à ponte encontra desafios significativos, como observado por especialistas. Primeiramente, devido ao elevado custo envolvido. Em segundo lugar, pela complexidade de realizar a obra em uma zona de guerra, uma situação inédita. Esta proposta, que levaria anos para ser concluída e exigiria bilhões de dólares, evidencia as dificuldades em encontrar alternativas para garantir a ligação entre a Rússia e a Crimeia.
Ponte da Crimeia, cuja obra começou em 2015 e que foi inaugurada em 2018 (Foto: WikiCommons)
O projeto também acarretaria riscos políticos e financeiros para Beijing. Isso se deve ao fato de a China nunca ter reconhecido oficialmente a anexação da Crimeia pela Rússia, o que poderia resultar em suas empresas sendo afetadas pelas sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia (UE) a Moscou.
E-mails interceptados mostram que uma grande empresa pública de construção da China está interessada no projeto do túnel, expondo o possível envolvimento de Beijing. A autenticidade das mensagens foi confirmada por registros empresariais, indicando a recente formação de um consórcio russo-chinês na Crimeia.
Os e-mails entre os responsáveis pelo consórcio mencionam reuniões com delegados chineses na Crimeia. Um deles, datado de 4 de outubro, destaca que a Chinese Railway Construction Corporation (CRCC), empresa estatal chinesa que atua em diversos mercados, como o ferroviário, de construções e financeiro, estaria disposta a assumir projetos de construção na região.
A CRCC construiu grandes redes rodoviárias e ferroviárias no território do gigante asiático. Nos últimos anos, colaborou em projetos na Rússia, incluindo a expansão do metrô de Moscou em 2021. Até agora, a empresa não se pronunciou.
Vladimir Kalyuzhny, empresário russo identificado como diretor-geral do consórcio, minimizou o assunto como “muito especulativo” e recusou-se a fornecer informações à “mídia inimiga”.
Especialistas em projetos internacionais de transporte afirmaram que a construção de um túnel sob o Estreito de Kerch é tecnicamente possível, com a China possuindo a experiência necessária. No entanto, alertaram que seria um empreendimento gigantesco, comparável a um túnel em construção entre a Dinamarca e a Alemanha, que já dura oito anos e está estimado em mais de 8,7 bilhões de dólares. Este último será o túnel mais longo da Europa quando concluído, o que se espera que ocorra perto do final da década.
A essa altura do conflito, que se aproxima de dois anos, a Ucrânia está empenhada em recuperar a Crimeia e conduz uma contraofensiva para interromper as linhas logísticas russas para a península. Nesse contexto, Moscou propôs a construção de um túnel.
Ao mesmo tempo, a Rússia avança com projetos de infraestrutura em territórios ocupados desde 2014, incluindo a costa do Mar de Azov, parte de uma rota terrestre que também se conecta à Crimeia. Imagens de satélite recentes mostram novos trechos ferroviários nessas áreas.
A construção envolve empresas associadas a Arkady Rotenberg, amigo de infância de Vladimir Putin, que acumulou grande riqueza por meio de projetos apoiados pelo Kremlin, incluindo os Jogos Olímpicos de Inverno de 2014 em Sochi. O oligarca, de 71 anos, ampliou suas propriedades na Crimeia desde a anexação ilegal, enfrentando sanções do Departamento do Tesouro dos EUA, segundo autoridades de segurança. Sua empresa de construção, Stroygazmontazh, foi a empreiteira principal na construção da ponte Kerch.
Por que isso importa?
A ponte da Crimeia é um símbolo da Rússia de Putin: imperialismo, corrupção, propaganda e seu efeito sobre o povo, bem como as sanções ineficazes do Ocidente, disse um artigo do jornal independente The Moscow Times publicado em outubro do ano passado.
A ponte da Crimeia – inicialmente chamada de ponte Kerch – deveria transformar a “ilha da Crimeia” em uma região modelo da Rússia, um lugar para o qual todas as estradas e dinheiro levavam. Isso não era particularmente lógico; nem todas as regiões russas têm algo assim, e, na verdade, cinco regiões sequer têm ferrovias. Mas seria uma boa vitrine. A ponte da Crimeia tornou-se um símbolo de ocupação permanente — não temporária —, confirmação visível da anexação de novos territórios e a personificação da ambição imperial.
Quase todo o dinheiro alocado para a ponte passou pelo amigo de Putin Arkady Rotenberg (cerca de US$ 4 bilhões, ou R$ 20,6 bilhões). É revelador que sua empresa Stroygazmontazh recebeu o pedido de construção sem concorrência – o governo essencialmente nomeou a empresa. O dinheiro foi enviado antecipadamente, então a empresa construiu, reportou ao governo e recebeu a próxima parcela. A Stroygazmontazh recebeu um contrato para construir a linha férrea para a Crimeia (US$ 325 milhões, ou R$ 1,68 bilhão) exatamente da mesma maneira – sem licitação. Os pagamentos foram feitos através do Mosoblbank, que foi reestruturado pelo SMP Bank de Arkady e Boris Rotenberg.
A ponte foi uma excelente demonstração de como os russos estavam dispostos a desenvolver o território recém-anexado. A megaestrutura era admirada até pelos céticos em relação ao regime. Afinal, era a ponte mais longa construída na Rússia (19 quilômetros). Em 2018, 6,8 milhões de turistas chegaram à Crimeia, ou 28% a mais do que em 2017 (5,4 milhões), dos quais metade veio pela ponte da Crimeia. Eles continuaram a vir apesar da pandemia. Em 2021, um novo recorde foi estabelecido, com 9,5 milhões de turistas. Apesar da guerra, mesmo em 2022, mais de 5 milhões de pessoas passaram férias na Crimeia. Assim, a ponte também é um símbolo da natureza apolítica dos russos.
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