A seleção se tornou o lugar em que todos parecem piores do que realmente são

E então, a já previsível demissão de Dorival Júnior foi consumada no contexto mais confortável possível para os verdadeiros responsáveis pelo desgoverno que cerca a seleção brasileira desde o fim da última Copa do Mundo. O treinador saiu antes que a goleada de Buenos Aires completasse 72 horas, ainda fresca na memória, ferida ainda aberta. Assim, sempre que este constrangimento for lembrado no futuro, em um desses tantos compilados de resultados frustrantes da seleção, será vinculado à figura de um responsável. Em 80 segundos, como quem recitava o texto de uma dessas notas oficiais protocolares após uma troca de treinador, o presidente da CBF completou o serviço.
E antes que apareçam ponderações sobre a qualidade do futebol da seleção brasileira sob Dorival, cabe um disclaimer: as críticas ao processo não significam um olhar acrítico ao trabalho da comissão técnica dissolvida. O time não evoluía, o período da Copa América não resultou em crescimento coletivo, e o plano tático traçado para o jogo contra a Argentina teve relação direta com a débil exibição da seleção. E é possível dizer tudo isso e, ao mesmo tempo, reconhecer o quanto é difícil trabalhar no universo das seleções no futebol atual. Dorival Júnior teve 16 jogos à frente da seleção brasileira, a duração de um Campeonato Paulista. Neste período, fez mais de 20 cortes de jogadores por lesão ou suspensão.
Ednaldo Rodrigues, presidente da CBF, anuncia a demissão do técnico Dorival Júnior
CBF
As avaliações negativas ou as ponderações serviriam para embasar uma defesa da demissão ou da continuidade de Dorival. O que não é possível, muito menos justo, é reduzir o assunto seleção brasileira à figura do treinador, o terceiro de um dos ciclos mais atabalhoadamente geridos a que foi submetida a camisa mais importante do futebol nacional. Já houve um treinador interino, outro de meio expediente, uma relação platônica – termo do sempre brilhante Alexandre Lozetti – nunca consumada com Ancelotti, e o recurso a Dorival.
Acontece que Copas do Mundo são torneios com enorme grau de aleatoriedade e descontrole. É possível ganhá-las com boa gestão, má gestão ou sem gestão – a AFA, responsável pelo futebol argentino, talvez seja tão ou mais caótica do que a CBF. E o Brasil tem talentos para ganhar jogos. Mas, quando se planeja a ida a um torneio, a qualquer torneio, a tarefa de quem comanda é aumentar as probabilidades. E a seleção brasileira se tornou uma fábrica de moer gente e sabotar o trabalho das pessoas.
Não se avançará um passo sequer se algumas perguntas não forem respondidas. A principal delas: por que a seleção se tornou um lugar em que todos parecem piores do que efetivamente são? Dorival é um treinador claramente melhor do que mostrou nestes 16 jogos. Vinícius Júnior, o melhor do mundo na última temporada, é muito melhor jogador do que exibe com a camisa amarela. O mesmo vale para Raphinha, Rodrygo e tantos outros. Todos vítimas da falta de um projeto esportivo, de processos. Algo especialmente importante quando a seleção, submetida a uma brutal renovação, reúne um elenco de média de idade baixa e, ainda por cima, pressionado por um país ansioso após 23 anos sem uma Copa do Mundo vencida.
O campo é o resultado de uma gestão centralizadora a ponto de imobilizar até as decisões menos relevantes, um ambiente em que a comissão de Dorival se viu obrigada a defender o emprego a cada convocação desde o fim da última Copa América, cada vez menos respaldada. E em tantas trocas de comando, coube a Ednaldo, um cartola tradicional e não alguém com formação técnica, a dianteira das decisões.
A goleada, o constrangimento de Buenos Aires, representou a noite em que o campo refletiu o bastidor. Naquela atuação, aliás, estão as digitais de toda a estrutura do futebol brasileiro, de alto a baixo. O que inclui CBF, federações, clubes. Porque mesmo com todo este desgoverno em torno da seleção, Ednaldo conseguiu façanha notável e talvez inédita: a união total do futebol brasileiro.
Um dia antes do Argentina 4 x 1 Brasil, foi aclamado por 100% das federações, a base política que mantém Ednaldo, e por 100% dos clubes, estes últimos vítimas de outra violência imposta pela CBF: um calendário que atende às federações, mas que lhes tira jogadores, obriga seus atletas a esforços desumanos e atenta contra a integridade de times, jogadores e, por que não?, de campeonatos. Aliás, já é possível perceber que o calendário de 2025 do Brasil periga não terminar em 2025, mas este é um outro debate.
Claro que Jorge Jesus, por ora o mais provável substituto, chegará com respaldo e conhecimento do jogo capaz de fazê-lo montar uma seleção competitiva. Ainda que não tenha experiência prévia como selecionador. Mas o fato é que a seleção agora parte para uma solução de emergência, um treinador que em um ano, cinco convocações e dez partidas – seis delas amistosas -, terá que observar jogadores, formar um time e elaborar a convocação final para a Copa do Mundo. Tudo a toque de caixa porque desde o Catar a CBF desconhece processos.
Por ora, a maior das perguntas é o quanto de autonomia Ednaldo está disposto a dar ao novo técnico, afinal tal condição sempre foi inegociável para Jesus. E mesmo que o português seja bem sucedido nas tarefas de campo, nada apagará a imagem de como a gestão da CBF precisa se transformar, da seleção ao calendário. Mas a eleição da última segunda-feira mostrou que, aparentemente, pouca gente no futebol brasileiro está preocupada com isso. geRead More