Destaque da Superliga, Jheovana não tinha RG até os 15 anos: “Medo da minha vida sem o vôlei”

Uma das grandes promessas do vôlei no Brasil, oposta do Barueri passou por infância humilde, sem pai e com mãe presa, e se tornou a maior pontuadora de um jogo de Superliga Destaque da Superliga, Jheovana não tinha RG até os 15 anos
No quarto desarrumado como o de qualquer atleta que não para em casa, há um lugar especial para o passaporte. Mas não são os carimbos, que mostram o quanto essa jovem já viajou pelo mundo nos últimos anos, o que mais importa ali. Apenas o fato de hoje ter um documento comum já mudou a vida de Jheovana Emanuele Sebastião. Um simples papel plastificado torna uma das principais jogadoras de vôlei do país única. E, aos 24 anos, com uma forte identidade.
– Eu só fui tirar RG quando eu tive que ir para Sacramento. Com 15 anos, eu não tinha um RG ainda – revela Jheovana, hoje oposta do Paulistano Barueri, clube que disputa os playoffs da Superliga feminina a partir desta sexta-feira.
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Jheovana, oposta do Paulistano Barueri
Fernanda Georges
A mudança para a cidadezinha mineira de 25 mil habitantes, na divisa de Minas Gerais com São Paulo, foi o primeiro grande passo para a adolescente que ainda deseja conquistar o mundo. Com 15 anos, Jheovana deixava a vida humilde com a mãe e os avós para jogar vôlei sem mesmo entender a importância que o esporte teria no futuro. Menos de dez anos depois, ela se tornaria a maior pontuadora de um jogo de Superliga (41 pontos, em 2023) e a terceira melhor atacante da atual temporada da competição nacional.
– Eu tenho medo de pensar como seria minha vida se eu não tivesse vindo para o vôlei – diz a atleta, hoje com passagens pela seleção brasileira de base.
Jheovana, do Barueri, com a mãe Luciana e a avó Maria no ginásio do Paulistano
Arquivo pessoal
Mas ainda tinha outro lado da identidade que estava se formando: o humano.
– Minha família é muito humilde. Eu sou do interior de São Paulo, de Américo Brasiliense, que fica ao lado de Araraquara, onde nasci. Ali tive uma infância normal, nunca passei fome, nem nada do tipo, mas era muito humilde mesmo – conta Jheovana, ao lembrar da cidade de pouco mais de 30 mil habitantes, por onde caminhava por horas no meio de canavial para visitar os avós.
Jheovana salva com o pé para o Barueri, mas Osasco acaba pontuando em mais um super rali
– Eu não conheço meu pai, sempre foi minha mãe. Antes eu morava numa cidade que era um ovo, Santa Lúcia (com cerca de 7 mil habitantes). Isso até os meus 11 anos, eu acho, quando fui morar com meus avós. Com a minha mãe aconteceram algumas coisas que… Ela acabou sendo presa. Eu acho que a minha motivação maior desde que eu saí de casa sempre foi pensar neles – afirma Jheovana.
Jheovana, a mais alta e com a camisa 12, no time de Sacramento, em Minas Gerais
Arquivo pessoal
A identidade pessoal forjada com dificuldades na infância, então, levava a adolescente a deixar São Paulo rumo a Minas Gerais e, na sequência, para Nova Trento, em Santa Catarina.
– Quando eu consegui sair da minha cidade e fui para Sacramento, foi a primeira vez, assim, que o Gabriel me adotou como filha dele. Foi a primeira vez que eu fui em um cinema, e eu já tinha 15 anos. A primeira vez que comi num Méqui, acho que foi quando eu fui pra Santa Catarina. E lá eu morava sozinha numa pousada – recorda a jogadora ao se referir pela primeira vez ao amigo que ela considera um pai por ter sido o treinador formador e hoje é o empresário dela: Gabriel Rodrigues.
Jheovana veste uniforme da seleção brasileira ao lado de Gabriel Rodrigues, treinador formador e hoje empresário dela
Arquivo pessoal
Por causa da estatura acima da média na infância, (hoje ela tem 1,94m de altura), Jheovana foi levada ao vôlei e acabou sendo observada por membros da seleção brasileira em torneios regionais. E, por causa do vôlei, mais precisamente do técnico das categorias de base do Brasil, ela foi ainda mais alto.
– Eu a chamei para um período de treinos e achei, naquele momento, que ela poderia ser oposta e não central, como era no time. Por ser atacante, pesada, braço pesado – recorda Wagner Coppini, o Wagão, hoje treinador do Paulistano Barueri e da seleção brasileira de base.
– Eu não sei o que aconteceu que, no treino, eu consegui treinar bem de oposta. E, aí, ele nem me testou de central. Começou ali, fiz parte do Sul-Americano que a gente ganhou, saí como melhor oposta da competição e a partir daqueles dias ele falou que queria me trazer para cá – explica Jheovana, referindo-se ao projeto comandado por José Roberto Guimarães, em São Paulo.
Jheovana com Ivani, treinadora de Américo Brasiliense
Arquivo pessoal
Mas esse voo não foi tão simples quanto podem parecer nas palavras de técnico e jogadora.
– Eu tenho um carinho muito grande pela Jheovana desde aquele dia na seleção, quando eu fiquei sabendo da história dela. Eu não vou soltar, vou acompanhar essa menina até ela poder andar, dentro do voleibol, como ela pode andar e com o potencial que ela tem – contou, emocionado, Wagão.
Aquele tal dia na seleção foi quando, com a equipe convocada para o Sul-Americano, a comissão técnica descobriu que Jheovana não tinha passaporte para viajar até o Peru. Era necessário que a mãe dela enviasse uma autorização, autenticada em cartório, à Confederação Brasileira de Voleibol (CBV). O documento demorou, não chegou e foi necessária a intervenção de treinador e supervisores, que viajaram ao interior de São Paulo para conseguir os papéis necessários. Foi quando Wagão e companhia descobriram que a mãe da atleta era catadora de recicláveis e os avós, analfabetos.
Jheovana com treinadores Vandeca e Marcelo em Nova Trento, Santa Catarina
Arquivo pessoal
SEM PLANO B
O plano estava traçado: desenvolver uma das grandes promessas da base do vôlei nacional. Então, já sob o teto do tricampeão olímpico Zé Roberto, veio a pior lesão da carreira. Em dezembro de 2021, aos 20 anos,, heovana rompeu o ligamento cruzado anterior.
– O ligamento cruzado anterior promove a estabilidade do joelho, então, quando você aterriza do salto ou quando você vai fazer o movimento de freada, ele é fundamental – explica Fernando Fernandes, fisioterapeuta do Paulistano Barueri e da seleção brasileira feminina de vôlei.
– Nesse período, tem uma passagem que foi muito forte. Eu lembro que a gente estava falando sobre lesão, e eu disse para ela: “Olha, as pessoas normalmente tem o Plano A, de ser jogadora, e, depois, começam a pensar em um Plano B, um Plano C”. E, aí, andando aqui na rua onde elas moram no (centro de treinamento) Sportville, a Jheovana olhou e falou pra mim: “Fê, isso é o que mais me preocupa: eu não tenho Plano B! – revela Fernandinho.
Jheovana e Fernando Fernandes, fisioterapeuta do Barueri e da seleção brasileira
Arquivo pessoal
A recuperação demorou mais de um ano. E manteve vivo o único plano: Jheovana voltou a jogar. Ela conquistou a vaga de titular na equipe e tornou-se a maior pontuadora de uma partida da Superliga ao marcar 41 pontos na vitória de Barueri contra o Brasília, em dezembro de 2023. Na atual temporada, a oposta vai iniciar os playoffs contra o Minas como a terceira maior pontuadora da competição.
– Ela teve proposta de todas as equipes aqui do Brasil e de duas equipes de fora. Para nossa felicidade, ela resolveu ficar aqui mais uma temporada pelo menos – comemorou Wagão.
Jheovana em jogo do Paulistano Barueri na Superliga 2004/2005
Fernanda Georges
O principal motivo para a permanência no projeto? As famílias que formou.
– A família Guimarães está aqui o tempo todo. As meninas sempre estão juntas também. Eu tive muita sorte. Comecei a namorar e meus sogros dispensam comentários – conta Jheovana, hoje noiva, sem esquecer da mãe, irmã, tias e avós do interior paulista.
– A primeira vez que eu consegui trazê-las a São Paulo foi no último jogo do primeiro turno. Primeira vez que minha mãe e minha avó foram assistir a um jogo meu, pessoalmente. Eu quero muito ajudá-las. Acho que sempre foi o meu foco, nem foi o amor pelo vôlei, foi o amor pela minha família.
Jheovana comemora o primeiro título adulto, pelo São Paulo Barueri, abraçada a Gabriel Rodrigues
Arquivo pessoal
Se o foco for mantido, não só Jheovana vai ter passaporte na família. Quem sabe a família Sebastião também não viaja para ver a oposta em Los Angeles, em 2028…
– Se eu falar que não tenho o sonho de ir para uma Olimpíada, é mentira! É lógico que eu tenho esse sonho. Mas acho que meu sonho maior é alcançar o máximo que eu puder alcançar.
Se há dez anos Jheovana nem sequer tinha um RG, hoje o passaporte mostra que o que ela pode alcançar não tem limite. E a identidade dela está muito bem registrada, no vôlei e na vida.
Jheovana é abraçada pela equipe do Paulistano Barueri
Fernanda Georges geRead More