Orações, conselhos e até plantas medicinais: cartas escritas por Padre Cícero aos fiéis passam por projeto de transcrição

 Os escritos vão desde temas religiosos e políticos a recomendações de plantas medicinais e conselhos a fiéis. O sacerdote de Juazeiro do Norte é considerado santo popular, mesmo ainda não sendo oficialmente reconhecido pela Igreja Católica. Projeto busca transcrever cartas escritas por Padre Cícero a amigos e fiéis
Nesta segunda-feira (24), os católicos, especialmente os nordestinos, celebram os 181 anos de nascimento de Padre Cícero Romão Batista. Considerado santo popular, a vida do religioso ainda desperta diversas pesquisas sobre sua trajetória. Entre elas, desde 2023 a Fundação Memorial Padre Cícero realiza um trabalho de transcrição de cartas escritas por ele.
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O trabalho minucioso, realizado em Juazeiro do Norte, no Ceará, busca trazer as mensagens de Padre Cícero mais conhecida à população.
O historiador Allan Freitas está a frente do projeto. Até o momento, foram transcritas 17 cartas. Entre elas, nove originais e oito cópias. Entre os objetivos, está manter viva a memória histórica de Padre Cícero e seu legado para as futuras gerações. As cartas trazem muitos detalhes sobre como Padre Cícero se comunicava, seja com familiares, devotos e até amigos.
“É um processo que requer muita atenção e paciência. Requer uma caligrafia antiga, da escrita do Padre Cícero do começo do século XX. Tem que ter uma base de conhecimento, de regras e técnicas para poder transcrever”, conta Allan.
Além disso, com o passar do tempo, os documentos históricos sofreram danos, corrosões e manchas causadas por agentes externos, o que dificultou a leitura completa do texto.
Escrita da época
Carta de Padre Cícero a um afilhado. Documento histórico faz parte de projeto de transcrição das cartas do sacerdote.
Claudiana Mourato/SVM
Sobre a escrita da época, ainda havia muita influência do português falado em Portugal. Algumas palavras são fáceis de identificar, outras não. Essa também foi uma das dificuldades encontradas durante o processo de transcrição.
“Nós não tínhamos algumas consoantes, como o ‘F’, era usado o ‘PH’. É possível observar nas cartas algumas coisas relacionadas à língua portuguesa. Primeiro, a questão da duplicação das consoantes nos meios das palavras. Já os romeiros escreviam como falavam, como ‘Padim Ciço’, eles não tinham acesso a uma educação de qualidade, então a oralidade é uma das características mais interessantes e presentes dessas cartas”, explica o professor de língua portuguesa, Alisson Almeida.
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Para ele, o Padre Cícero também tentava facilitar a comunicação com os devotos. Isso era possível identificar nos relatos encontrados.
“A escrita dele era bem formal, mas muito acessível. Ele tinha esse cuidado, ele sabia que muitos não tinham acesso à educação. Ele era culto, mas escrevia com um nível um pouco mais informal, para que essas pessoas pudessem entender. Ele adequava muito a linguagem da resposta a quem se destinava aquela carta. E na maioria das vezes, os assuntos das cartas eram os mesmos. Pedidos de oração, de bençãos e até milagres.”, reforça o professor.
Outra curiosidade era o uso dos meses do ano no início das cartas. O mês era escrito com numerais e letras, uma mescla. Por exemplo: 7bro, 8bro, 9bro, referentes a setembro, outubro e novembro.
De conselhos a plantas medicinais
Projeto transcreve cartas que foram escritas por Padre Cícero.
Claudiana Mourato/SVM
As cartas se destacam pelas diferenças nos escritos. Padre Cícero era conselheiro de amigos, de familiares e até de devotos. Entre os registros encontrados, um deles se remete a um “amiguinho”, termo bastante utilizado por ele, na época. Ele pede que o homem pare de invadir as terras de outro conhecido. Ele intervém em uma disputa e pede que os dois façam as pazes.
Padre Cícero também escrevia muitas cartas de recomendação e pedidos de empregos para pessoas necessitadas. Segundo o historiador Allan Freitas, ainda hoje existem esses registros.
Mas, o que mais aparecia nos conteúdos que eram enviados pelos devotos, eram os pedidos de curas de doenças. Padre Cícero recebia muitas cartas de fiéis pedindo ajuda para tratar enfermidades. Os devotos relatavam os sintomas, na expectativa de receber do padre, alguma ajuda na cura. E ele respondia indicando o uso de plantas medicinais, facilmente encontradas no sertão nordestino.
“Já que os devotos não tinham condições de comprar medicamentos, não tinham acesso ao boticário, era muito comum que eles entrassem em contato com o Padre Cícero dizendo algumas características das doenças, sintomas que eles estavam sentindo para que ele pudesse passar algum medicamento. Geralmente, os famosos remédios do mato. Nós temos alguns livros que pertenceram ao Padre Cícero, e era comum encontrarmos livros de medicina e de medicina alternativa. E a gente ficava se perguntando por que Padre Cícero tinha tanto interesse nesse tema. Quando a gente se debruçou sobre essas cartas é que a gente percebeu a necessidade que ele tinha de auxiliar a população dessa maneira, para acolhê-los de maneira mais eficaz”, explica Karla Lima, historiadora do Memorial Padre Cícero.
Ajuda psicológica e espiritual
Historiadora Karla Lima trabalha no projeto de transcrição de cartas escritas por Padre Cícero.
Claudiana Mourato/SVM
Além da cura para as doenças físicas, os devotos também pediam a cura das “doenças da alma”. Os pedidos chegavam de todos os estados nordestinos, principalmente de Pernambuco e Alagoas. Entre as cartas endereçadas ao religioso, algumas traziam pedidos de apoio emocional e espiritual.
“Tinha até cartas de visões. As pessoas relatando que estavam tendo as famosas visagens, vendo assombrações. E elas queriam saber do Padre Cícero se aquilo era real. Algumas outras eram tristes, como de uma senhora que perdeu cinco filhos num intervalo curto. São assuntos dos mais engraçados aos mais tocantes”
E muitos desses fiéis tinham pressa no retorno ao remetente. Tinha gente que colocava na carta que a resposta fosse enviada pelo mesmo portador. Para os historiadores, Padre Cícero tinha um assessor que o ajudava nas respostas aos devotos, mas não com a rapidez que o público procurava, pois a demanda era muito alta.
Onde encontrar as cartas
Historiador Allan Freitas trabalha em projeto que transcreve e atualiza cartas escritas por Padre Cícero.
Claudiana Mourato/SVM
Todo o material está disponível de forma física, na Fundação Memorial Padre Cícero, três delas estão expostas ao público. As demais estão guardadas no acervo da Biblioteca do Memorial.
A Fundação Memorial Padre Cícero fica aberta de segunda a domingo, das 08h às 12h, e das 13h às 16h. Está localizada no centro da cidade, no prédio da antiga Prefeitura de Juazeiro do Norte, o Palácio José Geraldo da Cruz.
Algumas das cartas também estão disponíveis em galeria on-line.
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