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Ex-Ceará desiste da Ucrânia após bombas e frio provocado pelo ataque: “Vivo um ambiente de luto”

Ex-Ceará desiste da Ucrânia após bombas e frio provocado pelo ataque: “Vivo um ambiente de luto”

Brasileiro ex-Ceará desiste da Ucrânia após três meses: “A gente repensa”
Tementes a Deus, o volante brasileiro Geovane e sua esposa aceitaram a missão de se mudarem para Ucrânia como uma oportunidade única. Inicialmente gostaram da tranquilidade da cidade de Kamianets-Podilskyi, bem distante da capital Kiev (459 km), um dos epicentros da guerra contra a Rússia. Epitsentr, aliás, é o nome do clube dele, recém-promovido à elite ucraniana, mas o convívio diário com a morte e com as cicatrizes do conflito fez o jogador e a família desistirem do país.
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Geovane, com boas passagens pelo Ceará e pelo português Portimonense, chegou ao Epitsentr em setembro de 2025, mas seu empresário já entrou em contato com o clube para fazer a dissolução do contrato e buscar um novo clube no Brasil. A guerra assusta e afasta.
Geovane em ação pelo Epitsentr
Arquivo Pessoal
Corredor de honra e soldados desmembrados pelas ruas
Esposa de jogador faz vlog na Ucrânia e se emociona com mortes
Embora Kamianets não sofra com ataques russos, é corriqueiro ver a polícia passar com corpo de soldados mortos na guerra. As pessoas saem de seus carros e se ajoelham formando um corredor de honra. Não bastasse isso, é normal também ver pelas ruas ex-combatentes sem membros do corpo, como perna e braço, ou andando em cadeira de rodas.
– Esse vídeo que ela fez chocou muita gente, né. Porque muita gente também não entendeu, porque estavam ajoelhando e tudo mais. Isso aqui é normal, porque eles fazem o corredor de honra para o soldado que foi morto na guerra. O corredor é feito enquanto passa o caixão do soldado. Então, você vive um ambiente de luto, né? É muito triste viver nisso.
Todo dia às 9h há um minuto de silêncio na cidade. Nos jogos de futebol não é diferente, mas a participação de militares feridos torna tudo mais impactante.
– Em todos os jogos temos um minuto de silêncio, e sempre entra um soldado sem a perna ou sem o braço para dar o pontapé inicial, para começar o jogo. É bem triste. É impossível o ser humano chegar aqui nesse país e não se sentir tocado.
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Explosões em Kiev assustam Giovane e colegas
Geovane, a esposa Giovanna e os filhos Joaquim e Josué vinham suportando dificuldades como o racionamento de energia provocado pelos ataques russos às usinas ucranianas e o fato de não haver escolas que ensinam em língua inglesa. Um susto no último dia 22, porém, foi a gota d’ água. O volante viajou a Kiev enfrentar o Polissya, e a madrugada foi aterrorizante. Ele e os três espanhóis do elenco não dormiram e sofreram com o barulho de bombas, algo que só foi interrompido às seis da manhã.
– Irmão, é difícil falar. Eu joguei acho que umas quatro vezes lá em Kiev e te digo que eu só tinha escutado sirene. Essa última vez que a gente foi a Kiev realmente nos deixou abalado. Eu lembro que era uma hora da manhã, eu fui acordado por um colega de quarto, ucraniano, e a gente escutava muito barulho. Eu fui ao quarto dos espanhóis, e a gente estava aflito. E ligava para a família sem saber o que estava acontecendo. Minha esposa aqui em casa também, na nossa cidade aqui, sempre ligada, antenada comigo, preocupada.
Geovane envolto em bandeira da Ucrânia
Arquivo Pessoal
O brasileiro de 26 anos explica com espanto que os ucranianos naturalizaram esse tipo de situação. Maior prova disso é o deboche que ele e seus companheiros tiveram de enfrentar quando revelaram a enorme dificuldade para dormir.
– E eu lembro que esse dia, irmão, a gente ficou até seis horas da manhã acordado, porque praticamente a madrugada toda teve bombardeio. E para os ucranianos é uma coisa, vamos dizer assim, “tranquila”. Porque eles já estão acostumados. É triste, mas eles já estão acostumados. É muito triste ver isso, porque a gente chega no ônibus no outro dia, e os caras perguntam: “E aí como é que vocês estão e tal?”. E aí os espanhóis falam: “cara, estamos aterrorizado, não dormimos”. E eles riem dessa situação e dizem: “eu dormi, tranquilo, isso aqui é normal”.
– Então, para nós, seres humanos, isso assusta, cara. Assusta, imagina você se adaptar a um ambiente de guerra, imagina você estar dormindo, e acontecer algo com a sua família ou com você próprio? Então é uma loucura. O cara tem que ter mental forte para segurar a barra. O ataque foi em um dia, no outro dia praticamente a gente estava jogando. Eu e os espanhóis conversamos bastante e falamos que realmente aqui é um lugar onde a gente se fortalece mentalmente, porque se você não tiver mental, você não consegue jogar. Como que você concentra no jogo depois de você ouvir certas coisas? Enfim, é difícil.
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Foram fortes mentalmente mesmo, já que no dia seguinte, mesmo sem o descanso devido, arrancaram um empate por 0 a 0 fora de casa.
“Russos querem os ucranianos no frio”
Geovane também relata que uma das grandes dificuldades impostas pela guerra é o frio. O ataque russo às usinas ucranianas provocam um inevitável racionamento de energia e a consequente impossibilidade de se usar aquecedores. A situação também obriga o atleta e sua família a programarem cada passo para evitar problemas com elevador e o uso da escada morando no sétimo andar do prédio.
– Os russos atacam de propósito as usinas da Ucrânia para deixar os ucranianos sem eletricidade no inverno. É o quarto ano seguido que eles fazem isso para deixar os ucranianos sem gerador, sem energia, sem aquecedor. Então, isso acaba mexendo com o mental do povo. Então, acho que essa é a estratégia maior deles.
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Os ucranianos (25 jogadores), maioria absoluta num elenco que conta com um brasileiro, três espanhóis e um romeno, costumam se informar a respeito da guerra em um grupo de Telegram, aplicativo de mensagens.
Geovane sorri ao lado do filho Joaquim
Arquivo Pessoal
– Nesse grupo eles fornecem todas as informações diárias da guerra, de luz, de água. Eles sempre mandam à noite, no final do dia, a programação do dia seguinte. E aí eles botam uma planilha. O nosso território é como se fosse um bairro, no nosso caso é o “1.2” (nome da região). Aí nesse bairro vai faltar 15 horas de energia. Ela é fracionada: quatro horas sem, duas horas com.
– Você se programa, só que você tem que ficar antenado no grupo, porque após daqui a pouco tem um bombardeio em algum lugar. Aí não são 15 horas, hoje vão ser 17, entendeu? Aí daqui a pouco não acontece nada, eles melhoram a situação, diminui um pouco (o racionamento), entendeu? Então a gente sempre tem que estar antenado.
Além das mudanças de panorama de supetão, é preciso estar atento ao elevador. Entrar nele em hora indevida pode ser uma péssima decisão.
– Elevador é uma coisa em que você precisa estar sempre antenado. Por quê? Porque, por exemplo, se você está aqui distraído, fazendo as coisas… Estou aqui conversando contigo e resolvo ir ao mercado. Aí você entra no elevador e se esquece do horário, por exemplo, você vai ficar preso. Há relatos aqui de ucranianos ficarem presos cinco, quatro horas dentro de um elevador Os prédios daqui são diferentes do Brasil, não têm vigilante, não têm porteiro. Aqui é sempre a gente pela gente. Então a gente tem a chave pra entrar, tem a chave pra sair e tem as câmeras.
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Maior desafio da vida e a hora de repensar
– Eu até comentei com eles que está sendo o maior desafio da minha carreira até o momento. A gente foi jogar em Kiev há pouco tempo atrás e a gente escutou barulho de drones caindo e tudo mais. Existe uma guerra, existe toda a desconfiança. E, mesmo assim, a gente aceitou.
– É algo do qual a gente não se arrepende. Mas eu e minha família hoje repensamos, né, cara? Repensamos muitas coisas para o futuro, para as nossas crianças. Hoje eu também penso no meu filho Joaquim, por exemplo. Ele tem 5 anos e não estuda porque aqui na cidade onde a gente mora não tem escola em inglês. Só tem ucraniana. Então, não é bom.
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Então, sendo bem direto e reto, teu objetivo, apesar de você ter contrato até 2027, é procurar um novo caminho, né? Jogar em outro país…
– Sim. E aqui, como tem a questão da guerra, o espaço aéreo é fechado. Então, há sempre viagens muito longas. A gente acabou de chegar em uma viagem onde a gente foi 12 horas de trem pro destino, jogamos e pegamos 12 horas de trem para cá de volta.
– Hoje eu sinto que eu preciso tomar uma decisão também voltada à minha família, voltada à minha esposa, voltada aos meus filhos. Aqui, agora, há racionamento de luz. Porque como há ataque da Rússia na Ucrânia, e eles atacam lugares específicos, estratégicos de usinas de energia, eles fazem isso na intenção de realmente deixar os ucranianos no frio, no inverno.
Frio intenso sem poder usar o aquecedor
– Aí é feito o racionamento de luz, e a gente praticamente fica 15 horas do dia sem luz, né? Então, eu conversei com o meu empresário, o meu empresário está conversando com o clube, para a gente ter uma possibilidade de estar retornando para o nosso país. Está muito, muito frio. Há duas semanas atrás estava nevando aqui. Esse frio faz um mês e vai até março, acho. Coisa de -3ªC, -4ºC. Ontem mesmo, a gente jogou, estava 0 grau, com sensação de menos -3ºC. Então, é uma loucura.
Exemplo com elevador
– Como falei: vou sair pra treinar aqui às sete horas da manhã, e lá está fracionado para às 7 horas cair a energia, eu fico preso. Vou sair só às 10 horas da manhã. Não tem como alguém me tirar, porque não tem energia, então é bem difícil.
Mapa que identifica o tipo de ataque
– E a gente tem um mapa também e, com ele, acompanha a guerra minuto a minuto. Sabe ali onde eles estão atacando, onde está passando o drone, a nossa cidade e tudo mais. Então a gente está sempre antenado. O mapa mostra se é míssil, se é drone, se é bombardeio naval. Há um míssil que os próprios russos lançam que atinge em segundos, algo assim. Então, quando esse avião sobe lá da Rússia, toda a Ucrânia entra em estado de alerta. Toda a Ucrânia começa a tocar sirene, porque se esse míssil sair da Rússia em direção à Ucrânia, pode cair em segundos, então todo mundo fica em alerta.
É desesperador, por mais que vocês estejam numa cidade segura. Não há outra palavra, certo?
– Exato. No meio disso tudo, você tem que estar sempre com a cabeça boa para performar, para fazer o seu melhor e cuidar da sua família. Não é um desafio fácil, mas está sendo um único. Deus tem me moldado como homem, como jogador também, porque às vezes a gente sofre algumas pressões no Brasil, de torcedores, de algo assim. E quando se passa por essas situações, a gente vê também que o mental precisa estar realmente blindado Se você não tem mental blindado, não vai pra frente.
Geovane em ação pelo Ceará
Felipe Santos/cearasc.com
Por que escolheu a Ucrânia mesmo sabendo da guerra?
– A gente escuta bastante sirene durante os dias, mas não há ataque aqui, porque eles geralmente atacam cidades maiores, como Kiev, Lviv e alguns pontos estratégicos. Então, o clube tem dado todo esse suporte e deu todo esse suporte enquanto a negociação acontecia. E, cara, realmente, a gente que está no Brasil pesa um lado financeiro, porque era um valor vantajoso para mim e para a minha família. E também a gente viu com olhos que era uma coisa boa para a minha carreira. Eu estou disputando a Primeira Divisão da Ucrânia, é uma boa visibilidade. Eu saí do Portimonense, na Segunda Divisão de Portugal, dei mais um passo na Europa, vim para a Primeira Divisão na Ucrânia.
Dificuldades com o idioma
– Então, acredito que foi pensando também nessa parte estratégica, pensando na carreira, pensando na questão financeira também, claro. Mas a gente sempre também tem que olhar o lado da família. Foi uma aventura maravilhosa, não vou negar. Minha esposa tem sido o meu alicerce aqui, porque muitas das vezes, eu não vou negar, já pensei em desistir. Nosso clube é um baita clube, um clube muito bom, só que ainda assim tem algumas coisas a melhorar, e eles não têm intérprete.
Momento ideal de voltar para o Brasil
– Então, imagina, eu chegar e tomar um choque de cultura, chegar onde há 22, 23 ucranianos e três espanhóis, praticamente todos europeus, e eu o único sul-americano? Cultura diferente, língua diferente, enfim, costumes diferentes. Então, é muito difícil. E minha esposa tem sido esse alicerce para que eu possa ter ficado aqui, minha família ter ficado aqui. E, junto com ela, a gente tomou essa atitude e está retornando para o nosso país.
– O melhor momento para se voltar ao nosso país é agora, porque eu preciso pensar na minha esposa, preciso pensar nos meus filhos, preciso pensar no bem-estar deles. Meu filho tem 5 anos, é um baita garoto. O menino se comunica em inglês e ucraniano e sempre está feliz. Mas, você sabe, criança precisa estar na língua dele, num contexto, numa escola. Então, hoje, para eu estar com a cabeça boa, eu preciso pensar na minha família. Então, eu tomei a minha atitude de conversar com o clube, conversar com o meu empresário. E eles estão tomando a melhor decisão para que eu possa retornar para o país.
Aviso ao clube de que poderia sair a qualquer momento diante das condições de guerra
– Antes de fechar, a própria minha esposa falou: “Olha, eu sempre estou com meu marido, sei que ele precisa de mim, eu preciso dele, a gente é uma família. A gente vai, mas a gente também precisa da ajuda de vocês. Caso a gente não se adapte durante cinco, seis meses, porque a gente está indo para um ambiente totalmente diferente do nosso, queria saber se vocês podem nos ouvir com carinho para a gente poder tomar a melhor decisão. E eles aceitaram isso. Então quando a gente ligou, minha esposa explicou a situação para eles, e eles entenderam.
Esposa sozinha após a última viagem, no jogo contra o Poltava, no dia 8
– Aqui é racionamento de energia, eu viajei na sexta. No sábado, praticamente comigo três ou quatro dias fora de casa. A minha esposa, se ela vai ao mercado comprar uma água, ela tem que descer sete lances de escada com meu filho Josué no braço, com o Joaquim na mão, entendeu? E aí sobe e tudo mais, então há alguns empecilhos principalmente quando se trata de família. Daí a gente tomou essa decisão.
Gol no último jogo, na vitória por 3 a 0 sobre o Poltava
– Cara, fiquei muito feliz pelo gol, Deus preparou esse gol no melhor momento, estou preparado para jogar esse último jogo contra o Shakhtar, para fazer o meu melhor pelo clube, e depois do jogo, só Deus sabe o que vai acontecer. geRead More