Facções disputam controle de portos no Ceará mirando o tráfico internacional de drogas
Facções disputam controle de portos no Ceará mirando o tráfico internacional de drogas
Um relatório da Polícia Civil do Ceará de agosto deste ano indica que a facção carioca Comando Vermelho (CV) vem travando, nos últimos meses, uma guerra pelo controle dos bairros do entorno do Porto do Mucuripe, em Fortaleza, o segundo mais importante do Ceará.
O grupo criminoso enfrentou os rivais da facção cearense Guardiões do Estado (GDE), que até então controlavam a região do porto. Segundo a Polícia Civil, o CV já domina o entorno do Porto do Pecém, o maior do Ceará, e busca controlar o do Mucuripe vislumbrando a expansão dos “negócios ilícitos”.
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📍 O Ceará tem dois grandes portos: o Porto do Pecém, localizado em São Gonçalo do Amarante, na Região Metropolitana de Fortaleza, concentra quase 80% da movimentação portuária do estado; e o Porto do Mucuripe, localizado em Fortaleza, concentra cerca de 20%
O relatório destaca a localização estratégica dos portos cearenses com a Europa e os Estados Unidos, tornando o estado um “hub” logístico para o tráfico internacional de drogas. O Primeiro Comando da Capital (PCC) já utilizava a posição do Ceará para o tráfico internacional de entorpecentes, inclusive com o apoio de mafiosos da Sérvia.
Nos últimos anos, a Polícia Federal investigou uma quadrilha com atuação nacional descoberta após uma apreensão de drogas no Porto do Pecém, com um esquema montado a partir da Bolívia e atuação em diversos portos do Brasil.
Porto do Mucuripe, em Fortaleza, é o segundo mais importante do Ceará
Igor Machado/Companhia Docas do Ceará
Para organizações criminosas como o CV e o PCC, portanto, o controle do entorno do segundo maior porto do Ceará, como sugere o relatório da Polícia Civil, é considerado estratégico para facilitar o tráfico internacional de drogas. Entenda:
Confronto de olho nos portos
Desde junho, um conflito estourou na região do grande Vicente Pinzón – que inclui bairros como o Vicente Pinzón, Papicu, Cais do Porto, Praia do Futuro -, em Fortaleza, entre membros do Comando Vermelho e da GDE.
O conflito piorou e, em setembro, as escolas da região chegaram a suspender as aulas. As duas facções disputavam o controle dos arredores do Porto do Mucuripe e, consequentemente, as rotas de tráfico internacional de drogas.
Guarda Municipal de Fortaleza em frente a escola que reabriu após confrontos entre facções na região do Grande Vicente Pizón
TV Verdes Mares
Já a partir de 2010, o Comando Vermelho e o Primeiro Comando Capital (PCC) tinham presença no Ceará, mas sem grandes enfrentamentos. O cenário mudou com o surgimento de uma facção local, a GDE, que recebeu apoio do PCC para rivalizar com o CV, levando a uma explosão da violência entre 2017 e 2018.
Nos últimos anos, quando o confronto pareceu amainar, o CV era considerado dominante no distrito de Pecém, próximo ao Porto do Pecém, enquanto a GDE (aliada do PCC) controlava o entorno do Porto do Mucuripe.
Com a guerra travada contra a GDE entre agosto e setembro de 2025 em Fortaleza, o CV tentou controlar o entorno do bairro Vicente Pinzón, que dá acesso ao Porto do Mucuripe. A movimentação dos criminosos foi descrita por um relatório do Núcleo de Inteligência da Polícia Civil ao qual o g1 teve acesso:
“O Comando Vermelho (CV) já domina a região do Porto do Pecém, em São Gonçalo do Amarante/CE [o maior do Ceará], e agora quer dominar a área em que está inserido o Porto do Mucuripe, no grande Vicente Pinzón, em Fortaleza/CE, vislumbrando não só a expansão dos “negócios” ilícitos dos integrantes da ORCRIM [organizações criminosas] no Estado, mas também a nível nacional, devido a localização estratégica dos portos cearenses com a Europa e os Estados Unidos”, alertou o documento.
Com a perda de territórios da GDE em setembro e absorção do grupo pela facção Terceiro Comando Puro (TCP), não está claro como ficou o balanço de forças no bairro disputado.
O g1 procurou a Secretaria de Segurança Pública do Ceará para comentar a situação e o relatório policial, mas até o momento não obteve resposta da pasta.
Apreensão em porto revelou quadrilha com atuação nacional
Em agosto de 2019, mais de 329 quilos de cocaína foram apreendidos em um contêiner com carga de mel no Porto do Pecém, com destino a Bélgica.
Conforme a investigação da Polícia Federal, o contêiner em questão chegou ao porto no dia 13 de agosto, passou por um scanner e estava limpo. Ele foi colocado em cima de outros contêineres e ficou parado no terminal aguardando o embarque para a Europa.
Na noite do mesmo dia, porém, o contêiner foi içado pelo operador do guindaste, e colocado no chão. Ao mesmo tempo, dois homens em um caminhão de uma empresa transportadora, com acesso ao porto, se aproximaram da estrutura, abriram-na e puseram lá dentro dez sacos com 329 quilos de cocaína ao todo.
A droga foi descoberta na manhã do dia seguinte, 14 de agosto pela Receita Federal. Os pacotes foram avaliados em R$ 49 milhões. A apreensão deu origem a uma investigação que revelou uma organização criminosa com atuação em vários estados, especializada no tráfico internacional de cocaína.
Porto do Pecém, em São Gonçalo do Amarante, é o maior do Ceará
Divulgação/Tatiana Fortes/Casa Civil
O grupo era comandado pelo casal do Mato Grosso do Sul Marcelo Mendes Ferreira, o “Patrão”, e Karine de Oliveira Campos, a “Patroa”. Eles fundaram o esquema a partir da Bolívia, e no Brasil ele era gerenciado por Antônio Amâncio da Silva, o “Baixinho”.
Conforme documento da Polícia Federal ao qual o g1 teve acesso, a quadrilha é descrita como “estável, razoavelmente dividida em células, com definição de atribuições e hierarquia e com utilização de engenharia societária e financeira para financiamento e operacionalização do tráfico de cocaína, bem como para o branqueamento e distribuição dos lucros”.
Além do Ceará, a quadrilha atua, pelo menos, em São Paulo, Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Pernambuco, Santa Catarina, Paraná e Amapá, e também no exterior.
Em 2024, a Polícia Federal deflagrou a Operação Néctar, prendendo 15 pessoas, entre elas Amâncio, o “Baixinho”. Ao longo dos anos de investigação, a polícia conseguiu apreender mais de 7 toneladas de drogas que o grupo movimentou pelo Brasil.
Como atuava a quadrilha
A logística da organização criminosa envolvia o recrutamento de funcionários de empresas que atuam dentro dos portos e de motoristas com acesso ao local.
Uma vez infiltrados, os criminosos utilizam o modelo de “contaminação de contêineres”, chamado de Rip On/Rip Off, isto é, inserindo drogas sem que, na maioria das vezes, o exportador e as empresas responsáveis pela administração dos portos saibam.
No caso de 2019, por exemplo, entre os funcionários cooptados pelos criminosos e que trabalhavam em empresas com atuação no porto estavam um gerente que tinha acesso aos horários e datas dos navios, e um coordenador de turno, que controlava o staff responsável por movimentar as cargas.
No esquema de “Rip on/Rip off”, criminosos inserem drogas dentro dos contêineres sem os proprietários saberem
Thiago Gadelha/SVM
Um operador do guindaste, um operador de câmeras e um responsável pelo scanner também estavam envolvidos. Além disso, o grupo também alugava veículos de empresas lícitas ou até mesmo criava empresas de transporte que realmente faziam transporte de cargas lícitas para ter justificativa de acesso ao porto. E, no meio das cargas lícitas, iam as drogas.
Entre as empresas ou criadas ou cooptadas pelos criminosos estavam empresas de transporte, de logística, exportadoras, empresas de agenciamento marítimo, de manutenção e reparação de embarcações.
Os CNPJs das empresas envolvidas eram de vários estados brasileiros. Para lavar o dinheiro do tráfico, os criminosos usavam outras empresas, como um buffet, ótica, construtoras, entre outras. A quadrilha também negociava a compra/participação em empresas lícitas, usando dinheiro oriundo das atividades ilícitas.
PCC x CV
O movimento do Comando Vermelho para controlar o entorno dos portos indica um esforço para disputar uma operação até então dominada pelo Primeiro Comando da Capital.
Embora os investigadores não categorizem o grupo da Patroa e do Patrão como sendo parte da facção Primeiro Comando da Capital (PCC), é sabido que vários integrantes da quadrilha dos dois também são membros do PCC.
A atuação do PCC não se restringe ao Porto do Pecém. Em 2023, a Operação Dontraz, deflagrada pela Polícia Federal em vários estados brasileiros, revelou que o PCC estava enviando drogas para a Europa pelo Porto do Mucuripe, em parceria com mafiosos de países dos Bálcãs, em especial a Sérvia.
A investigação em abril de 2022 quando um pesqueiro de bandeira brasileira foi interceptado na costa africana com 5,4 toneladas de cocaína. A tripulação era do Brasil e de Montenegro.
Mais tarde, no mesmo esquema do PCC com os sérvios, uma carga de 1,2 tonelada de cocaína foi apreendida em um pesqueiro que partiu justamente do Porto do Mucuripe, até então território da GDE (aliada do PCC) e que agora a facção Comando Vermelho tenta dominar.
A despeito da operação da PF contra a quadrilha liderada pelo “Patrão”, a “Patroa” e o “Baixinho”, em 2024, o tráfico de drogas parece continuar fluindo pelas vias marítimas do Ceará. Em fevereiro de 2025, foram apreendidos mais de 130 quilos de cocaína no Porto do Pecém. Cinco dias antes, foram apreendidos 416 quilos de cocaína no Porto do Mucuripe.
Receita Federal apreendeu 133,5 kg de cocaína escondidos em um contêiner de polpa de manga congelada no Porto do Pecém, em São Gonçalo do Amarante.
Receita Federal/ Divulgação
Facções tem ‘diversificado’ negócios no Ceará
O g1 teve acesso a documentos que mostram como as facções criminosas no Ceará têm expandido as áreas de atuação para ampliar suas fontes de renda – muitas vezes, isso ocorre por meio da violência contra moradores e da disputa territorial com outros grupos, resultando em conflitos armados e famílias expulsas de casa.
Este modus operandi é semelhante ao que levou à guerra pelos bairros no entorno dos portos. Os criminosos, por meio do domínio territorial, tentam não só controlar o transporte e venda de drogas na região, mas também procuram controlar o fornecimento de serviços prestados aos moradores.
Entre os serviços que os criminosos tentaram controlar estão internet, jogo do bicho, loterias, cigarros e bebidas falsificados, “taxa de funcionamento” para comércios, entre outros. Em agosto, os criminosos tentaram impor controle até sobre a venda de água de coco na avenida Beira Mar, o principal ponto turístico de Fortaleza.
O professor Fillipe Azevedo Rodrigues, coordenador do Grupo de Pesquisa em Direito e Economia do Crime da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), explica que a “diversificação” dos negócios é uma forma dos criminosos aumentarem os lucros com outras fontes de renda além do tráfico de drogas e armas.
Os criminosos viram no modelo das milícias do Rio de Janeiro uma oportunidade de explorar outras fontes de captação da renda, sempre buscando o monopólio dos territórios que são dominados pela força.
“Hoje está mais visível porque está impactando muito mais a sociedade, sobretudo nessa questão de territórios, de domínio de territórios, que é uma nova vertente que se consolidou. Começa no Rio de Janeiro com as milícias lá, tradicionais, que vendiam segurança contra o tráfico. E aí o tráfico se apropriou também desse modus operandi e começou a dominar áreas e até impediu o acesso a serviços públicos. E começou a ver que isso era muito lucrativo, porque você cria, querendo ou não, uma sociedade paralela, um Estado paralelo e essencialmente monopolista. O crime organizado, para prosperar, ele precisa operar em monopólios. Então, ele se torna isso, ele impõe isso à sociedade”, explica.
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