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O homem que fez o futebol ficar bilionário e não ganhou nada por isso: conheça a história de Bosman

O homem que fez o futebol ficar bilionário e não ganhou nada por isso: conheça a história de Bosman

30 anos da Lei Bosman: a história de luta que mudou o futebol
Ele é um dos nomes mais famosos da história do mundo da bola. Virou até verbo. O que ele fez transformou para sempre a relação entre atletas e clube, alterou as dinâmicas de mercado e levou à consolidação das grandes potências da Europa. Muitos jogadores ficaram milionários, até bilionários, graças ao seu esforço. Mas Jean-Marc Bosman não ganhou nada por isso. E se sentiu durante décadas abandonado pelo futebol.
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FIFPro
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Há 30 anos, o Tribunal de Justiça da União Europeia declarava ganho de causa para o belga Jean-Marc Bosman em sua disputa contra diferentes entidades do futebol. A repercussão: jogadores passaram a trocar livremente de clube ao final do contrato. Caíram as restrições nos times para escalações de atletas europeus. O futebol mudaria drasticamente.
Entenda nos parágrafos abaixo porque o caso Bosman revolucionou o futebol internacional, e quais foram os impactos na vida do homem que dá nome à lei e não conseguiu nunca mais voltar a jogar.
A vida pacata
Jean-Marc é hoje um idoso de 61 anos. Pele clara, careca, sobrancelhas rareadas. O queixo quadrado ganhou forma arredondada com o avançar da idade e do peso. Os olhos pequenos e pretos continuam ali, trêmulos.
Virar esse olhar para os lados ficou difícil depois de uma operação no pescoço. Outra cirurgia, há 15 anos, colocou uma placa de titânio no quadril. Inclinar o corpo se tornou uma ação dolorosa. Futebol? Fora de cogitação. Até porque os amigos minguaram. O pebolim não rola todo dia. A alternativa de exercício é caminhar.
A vida passa tranquila em Awans, município com menos de nove mil habitantes ao noroeste da província de Liège, a quinta maior da Bélgica em população (197 mil pessoas). A casa traz decoração simples, com piscina no jardim, algumas fotos antigas do tempo de jogador e outras de familiares. O forno à lenha talvez seja a peça que chama mais atenção.
As visitas dos dois filhos quebram a rotina da vida simples e solitária. Há uma filha mais velha, de outro relacionamento. Bosman tem problemas de saúde, mas sobrevive. Não era famoso antes, não virou uma estrela. Não contava com agente antes, não mudou agora. Reluta atender jornalistas. A única coisa que pode vender é a própria história.
Esta começara com algum destaque no futebol de base (foi capitão da seleção belga sub-21), mas não passou de uma carreira modesta. Nenhum grande clube da Bélgica, nem da Europa.
Até uma tentativa frustrada de transferência para a segunda divisão da França. A batalha nos tribunais atravessou anos, diferentes instâncias. Os problemas se acumularam durante e depois do processo. O caso acabou tendo repercussão mundial.
Jean-Marc nega se arrepender do que fez. Porém, a impressão de quem convive com ele é de que os sentimentos sobre o assunto são misturados. Isso não seria um absurdo, dado tudo o que Bosman viveu.
Jean-Marc Bosman (centro) e dois advogados, Marc Lucan e Jean-Claude Dupont
Getty Images
Entenda o caso na Justiça
Meio-campista formado nas categorias de base do Standard de Liège, de origem na classe trabalhadora da Bélgica, sem tanto talento, nem títulos como profissional, mas com “muita dedicação” na visão dele mesmo, Bosman tinha 26 anos quando surgiu a oportunidade de mudar de país.
Ele era jogador do RFC Liège, e o contrato com o clube belga se aproximava do fim naquele verão do ano de 1990. Chegou a proposta de ir para o Dunkerque, da França. Só que naquela época o atleta não podia simplesmente ir embora ao final do vínculo. O futebol vivia os tempos do “passe”, espécie de título de propriedade sobre o jogador.
O RFC Liège pediu um valor pela transferência do “passe” de Bosman muito acima do que o Dunkerque estava disposto a pagar. Além disso, o clube belga cortou o salário do jogador em 75% e não quis liberá-lo ao final do contrato. O clube francês saiu da jogada. Jean-Marc foi suspenso pela federação belga de futebol por não assinar com o RFC Liège.
Bosman não conseguiu jogar em outro lugar depois de entrar na Justiça contra a Uefa
Arquivo
Bosman resolveu então entrar na Justiça. Mesmo sem ter instrução ou formação acadêmica para tal, na visão de alguns. Não queria estar no olho do furacão, e ninguém acreditava muito que poderia ganhar. Ele só queria voltar a jogar futebol e sentiu que esse era o único caminho. Não fazia ideia de quanto tempo isso poderia demorar.
A batalha nos tribunais durou cinco anos, desde a Primeira Instância de Liège até a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia, sediado em Luxemburgo, no dia 15 de dezembro de 1995. A disputa começou contra o RFC Liège e a federação belga, mas depois cresceu para a Uefa, responsável pelas regras do sistema de transferências na Europa. Houve várias audiências tensas e pressão de clubes para isolar o então jogador.
Segundo a defesa de Bosman, as regras de transferência e as cláusulas de nacionalidade não deveriam se aplicar a ele, com base na legislação trabalhista da União Europeia. E a decisão da Côrte foi nesse sentido, em termos simples: autorizou a livre circulação de jogadores na Europa e acabou com as cláusulas de nacionalidade que funcionavam para limitar os atletas estrangeiros por equipe.
Além do trabalho dos advogados Luc Misson e Jean-Louis Dupont, Bosman contou com o apoio da FIFPro, a organização global dos sindicatos de jogadores profissionais. Ele foi indenizado ao final.
Carreira, saúde, relações e ilusões perdidas
A vitória na Justiça significou a derrota em campo. O fim da carreira. Jean-Marc Bosman não conseguiu outro time para defender depois. Passou a ser considerado “tóxico” por clubes e até colegas de profissão. Outrora querido nos vestiários, perdeu amigos no futebol.
Os problemas se estenderam à vida pessoal. Encarou um divórcio. Perdeu muito dinheiro. Vendeu duas casas e um carro. Morou por um tempo num quarto improvisado na garagem dos pais. Sofreu de alcoolismo, com crises epilépticas. Foi flagrado dirigindo bêbado duas vezes. Passou por depressão. Chegou a ser condenado por violência doméstica (o Tribunal de Apelação de Liège anulou a sentença em 2013).
Bosman sobreviveu graças a colaborações de pessoas conhecidas. Tentou trabalhar numa loja de artigos esportivos, mas não deu certo. Arriscou gerar publicidade consigo mesmo, lançou camisas. Não sabia como investir. Conheceu o argentino Diego Maradona e o francês Cantona, entre outros episódios de etérea popularidade.
Jean-Marc lançou recentemente uma biografia, em francês. Ele se vê hoje como um dos jogadores mais famosos do mundo, ao lado de Pelé, Maradona e Platini — não pelos mesmos motivos. O desejo de ser recompensado pelo “sacrifício” da classe de jogadores é aspecto recorrente no livro, assim como as suas contradições mais íntimas.
O futebol pós-Bosman: rico e concentrador
O mundo da bola não mudou de bate-pronto. Uefa e Fifa demoraram a aceitar a decisão da Justiça, assim como as ligas nacionais europeias. Talvez o retrato de uma época em que o continente ainda desenvolvia o mercado único, as viagens sem fronteiras e o euro. O futebol não estava preparado para o dia seguinte da Lei Bosman.
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A lei do passe livre, conhecida como Lei Pelé, que mudou a legislação no Brasil sobre o passe de jogadores, entrou em vigor por aqui apenas em março de 1998. Só que os clubes tiveram três anos para se adaptarem.
O caso de Bosman pisou no acelerador do futebol globalizado. Da indústria bilionária. A Fifa estruturou o mercado de transferências, com janelas. Jogadores passaram a ter muito mais poder de barganha com os clubes. Salários, bônus por assinatura de contrato e multas rescisórias explodiram de valor. Os agentes de atleta entraram de vez no circuito.
Caso Bosman derrubou as restrições nas escalações para atletas da União Europeia no futebol de lá
Internet
A diferença que existia entre os clubes mais ricos da Europa para o resto do mundo virou um abismo. Eles concentram talento, dos mais variados cantos do planeta, e dinheiro, muito dinheiro. No caso do Real Madrid, o mais rico do mundo, R$ 7,7 bilhões de arrecadação.
Curiosamente, o clube espanhol não precisou pagar uma fortuna ao Paris Saint-Germain pelo atacante Mbappé por causa da Lei Bosman, porque o francês estava em fim de contrato com o PSG.
Segundo dados da Fifa, o mercado do futebol masculino registrou em meados de 2025 mais de 12 mil transferências internacionais, com gastos de mais de 9,7 bilhões de dólares, o equivalente a R$ 52,8 bilhões hoje.
Em sua biografia, Jean-Marc Bosman diz estar em paz após muitos anos de frustração na batalha contra a injustiça que considera ter sofrido. Quem o conhece destaca a sua visão política de lutar pelas pessoas. Porém, ressalta o discurso repetitivo dele de que poderia estar ganhando 0,1% do valor das transferências do futebol. geRead More